"Ela não pinta uma história, pinta para perceber o que sente"

O filho que procurou perceber a mãe e acabou por descobrir que cada história guardava um segredo da vida dela
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Nick Willing diz que teve sorte, conseguiu filmar a mãe em circunstâncias ótimas. Primeiro, porque ela aceitou responder às perguntas que ele tinha, deixando-o perplexo em alguns momentos. Segundo, porque pôde fazê-lo antes da pequena trombose que ela teve no ano passado e que lhe deixou algumas marcas, alguns esquecimentos. Sabe que era habitual ela dar respostas variadas sobre a explicação dos quadros , "mas quando fala sobre a vida dela a história é sempre a mesma, ela não joga com isso". Também sabe que ela pode "dar a sensação de ser uma criança perdida", mas não o é. "Eu protejo-a mas percebo que ela é uma pessoa com um coração enorme e forte."

Nick foi comparando as histórias da vida com o que ela tinha pintado nesses tempos. E o que encontrou foi uma "explicação complexa": "É uma explicação das emoções que sente sobre aquelas experiências, não é só a história da experiência, é a história da maneira como ela se sente. Por vezes, ela não sabe o que sente e tem de fazer a obra para descobrir como aquilo é dentro dela. É por isso que ela pinta, para ver se descobre como sente uma coisa que é muito importante e não percebe bem. Tem de escolher uma história - a Jane Eyre ou o Peter Pan. Começa a pintar mas a história muda e às vezes fica muito espantada. Continua porque a pintura está a falar com ela e percebe que não é só sobre Jane Eyre. Tinha escolhido essa história porque estava ligada a um caso pessoal e íntimo dela que precisa de explorar para perceber."

Em suma: "Ela não é uma ilustradora. Percebendo isto, posso perguntar coisas diferentes para ver se toco no segredo. Por isso o filme se chama Histórias & Segredos. Começa por uma história mas é o segredo que dá o poder à obra."

Como é que uma pessoa cresce com uma mãe assim? "Cresce para perguntar mais, perguntas mais profundas, e para descobrir o que a interessa e a maneira de comunicar. A maneira como comuniquei com a minha mãe foi desenhar. A coisa que ela quer fazer e que acha mais importante é desenhar."

E mesmo nas situações mais difíceis, quando Nick se queixava de ser perseguido e agredido por colegas no colégio interno inglês onde esteve dos 12 aos 18 anos, Paula dizia-lhe: desenha isso. E era um tempo duro, porque Nick falava mal inglês - tinha crescido e estudado em Portugal - e "era muito feio": usava aparelho nos dentes, óculos enormes e luvas de plástico porque o stress lhe provocou eczema nas mãos. "Eu desenhava rapazes horríveis e mandava-os à minha mãe. É assim que se aprende a desenhar: ter uma sensação, desenhar aquilo. E o desenho sai autêntico. Ela percebe isso muito bem, é o que ela fez a vida toda."

Não punha questões quando era miúdo. Tinha as empregadas da casa da avó - a Ju, a Irene e a Luzia - a cumprir o papel de mães. Porque mesmo quando estavam todos juntos na Ericeira fechavam-se no estúdio a pintar: "Nós batíamos na porta e eles não diziam nada."

Até que um dia Nick se zangou e disse ao pai: "Tenho amigos na escola que têm pais e eles são doutores, advogados, coisas muito importantes, eu percebo que o mundo precisa deles. Mas qual é o interesse de ser um artista? E o meu pai respondeu: o artista é como um explorador que vai a mundos onde ninguém foi e volta com coisas que ninguém viu antes, porque é um mundo onde ninguém esteve, e as pessoas vão reconhecer isso."

Quando preparava o filme encontrou desenhos numa gaveta que Paula fizera num período de depressão. "Ela teve muitos problemas psicológicos, sentia que não tinha valor. Tenho duas filhas e é difícil uma pessoa perceber como era nesses tempos. Nos anos 1950 e até 1960, uma mulher não era uma pessoa como um homem, e ela era uma estrangeira, de Portugal. Foi sempre rejeitada."

Ficou espantado com as revelações que a mãe lhe fez? "A primeira vez que ela me contou estas histórias tive medo, não sabia o que fazer com aquilo." Por exemplo, quando disse que tinha feito abortos. "Ela não quis dizer que fez abortos, quando pintou aquela série, porque não queria que dissessem que estava a queixar-se. Na altura, disse que tinha pintado porque achava que a situação era injusta para as filhas e as netas. Mas os quadros vão mais além, aquilo é pessoal. Ela tinha 17 anos quando fez o primeiro aborto, magoou o espírito e o corpo. Fez porque tinha de sobreviver."

Nick Willing compara a forma de vida da mãe com o que se passava em Portugal no Estado novo: "Era uma mistura de procurar as verdades e ao mesmo tempo escondê-las."

O realizador tem propostas para fazer dois filmes mas pensa que não vai aceitá-las. "Tenho feito filmes sobre Alice no País das Maravilhas, Peter Pan, Neverland, O Homem de Lata, tudo contos de fadas escuros, para adultos. Mas depois de fazer o filme sobre a mãe fiquei transformado. Consegui pôr o dedo em cima de emoções verdadeiras e com muito valor, universais, num documentário. Foi o primeiro documentário que fiz. Não só estou impressionado com o meio como o acho melhor. Mas não se ganha dinheiro. Tenho trabalhado com a equipa da Comedy Store de Londres. Eles têm uma relação de família, têm cerca de 60 anos e estão mais próximos uns dos outros do que das famílias. Isso é muito comovente para mim, escolher construir uma família com pessoas com quem tem interesses em comum. Penso fazer um filme sobre eles. Tenho muito material, vamos ver se faço. Posso fazer um filme sobre o Raul Solnado ou o Barack Obama, mas não tem nada a ver comigo."

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