"Neste momento não se sabe o que é ou não verdade em Cabo Delgado"

Carlos Almeida é desde 2010 coordenador nacional de projetos da Helpo, a ONG com trabalho expressivo em Moçambique, desde 2008. Um trabalho que começou no norte, nas províncias de Nampula e Cabo Delgado, mas com o drama vivido depois da passagem do ciclone Idai, que atingiu o centro, estendeu-se a Manica, junto à fronteira com Zimbabué. Por estes dias em Portugal, o responsável da organização traçou ao DN o retrato do que está a acontecer naquela região moçambicana.
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Acabou de regressar de Pemba, Cabo Delgado, onde tem estado nos últimos anos e assistiu ao início de toda esta turbulência. Que imagem traz de lá?Assisti, sim. Desde 2011 que temos projetos numa zona que hoje está inacessível, que é no distrito de Mocímboa da Praia, que foi onde no dia 5 de outubro de 2017 começaram estes ataques. É um drama que nos toca a nós, na Helpo, mais proximamente, porque todas as crianças que apoiávamos dessa comunidade, a 50 km da vila sede
, tiveram que fugir. Aliás, todas as pessoas dessa comunidade. Também na escola secundária Januário Pedro - onde tínhamos 124 alunos com bolsas de estudo, também fugiram. Neste momento estamos a tentar encontrar estas crianças.

Mas já encontraram algumas?
No dia em que me vim embora, a meio de abril, encontrámo-nos com crianças na cidade de Montepuez, a 200 km de Pemba (para o interior) e algumas delas estavam nesse centro de deslocados. Continuamos a tentar fazer o seguimento dessas crianças e das suas famílias, porque a nossa lógica é chegar a toda a comunidade através das crianças. A nossa maior forma de apoio ainda é o apadrinhamento de crianças à distância, mas comunicamos sempre aos "padrinhos" que aquela criança é um rosto de uma ajuda que é dada a toda a comunidade. Ou seja, com o dinheiro que recolhemos, fazemos projetos em que toda a comunidade sai beneficiada.

Quantos "padrinhos" tem atualmente a Helpo?
Cerca de 4000. Grande parte estão em Portugal, alguns estrangeiros, mas muitos portugueses que estão no estrangeiro. E as pessoas sabem que aquele contributo mensal vai ajudar toda uma comunidade.

E como é que têm sido os últimos tempos, nessa zona que foi alvo de ataques. O que é que tem visto?
A última semana foi muito marcada pelos acontecimentos recentes. Fez agora um mês a 24 de abril que aconteceu o ataque a Palma, que não foi muito maior que outros ataques, mas teve mais impacto nos media por ter sido perto de um grande investimento internacional. Por ter envolvido ocidentais.

A perceção que tem é que os ataques anteriores já eram de iguais dimensões?
Sim, eles começaram em 2017. São mais de três anos, mais de 700 mil deslocados, o que significa 30% da população de Cabo Delgado.

Mas ia contar dessa semana que foi mais marcante para si. Porquê?
Porque pela primeira vez eu senti algum receio pelas pessoas que estão em Pemba. Além disso, entre os vários fatores que sofrem impacto quando há um ataque, destaca-se logo a verdade. Neste momento não se sabe o que é verdade e o que não é. E estes fortes boatos e rumores que acontecem sistematicamente estão a deixar muitas pessoas em estado de alerta. Há pessoas que por receio começam a enviar a sua família para outros pontos ou para fora do país.

Mas a que nível? Instala-se um boato de um ataque, por exemplo?
Sim. Até este ataque de Palma - que é uma vila pequena - as pessoas estavam muito tranquilas. Depois do ataque houve um grande impacto a nível internacional , e continua a fazer eco. No final da outra semana houve notícias de que Mueda estava a ser atacada e era uma mentira. Havia muitas fake news a correr. E as pessoas têm muito receio, ouvem dizer que existem muitos terroristas infiltrados dentro da cidade de Pemba, e está a gerar-se um clima de muita instabilidade. Sente-se que as pessoas estão realmente muito receosas.

Quando falamos de 700 mil deslocados implica que cada um deles é uma história e envolve outras?
Cada um deles é uma história verdadeiramente dramática. São pessoas que fugiram como resposta aos ataques. Quase ninguém foge de prevenção porque acha que a sua aldeia vai ser atacada.

Quer dizer que as pessoas só fogem quando estão a ser atacadas?
Sim, com tudo o que isso acarreta a nível de traumas e de deixarem as suas vidas para trás, com a roupa do corpo. Alguns nem os documentos conseguem levar. Em paralelo há notícias de crianças que são raptadas. Meninas, rapazes. Há famílias que estão em grande sofrimento, com dificuldades em alimentar os seus filhos. As agências internacionais estão já de há uns meses para cá em alerta, o programa mundial de alimentação já em dezembro lançou um aviso de que os fundos não estavam a chegar para garantir a continuidade do apoio. Isto apesar de haver um grande esforço do governo moçambicano para retirar as pessoas destes centros de deslocados transitórios que não têm quaisquer condições.

Parece-lhe que o Governo Moçambicano está a ficar o que pode ou o que é possível?
Eu acho que no início não deu a devida importância, mas neste momento está a dar, só que um pouco a "correr atrás do prejuízo". Embora, é preciso ter consciência de que estamos falar de zonas de mato profundo, onde se escondem os terroristas. Estão a lutar contra um inimigo invisível. Não se sabe quem é nem o que quer, e há rumores de que por isso, por vezes, tiram as armas e fazem passar-se por cidadãos comuns, enquanto deslocados, quando não o são.

E enquanto cidadão, com responsabilidades nessa área de apoio humanitário, parece-lhe que a comunidade internacional está a responder ou, por causa dessas circunstâncias, específicas, é difícil apoiar Moçambique nesta luta?
Eu vejo que a comunidade dos estados da África Austral está preocupada. Quer a Tanzânia (que está muito perto) quer a África do Sul têm medo que se alastre para outros países. Fala-se que uma parte destes terroristas em Moçambique seja de outras nacionalidades, quer desse dois países quer mesmo do Congo.

E por parte do Governo português?
Julgo que tem havido uma forte tentativa de tentar chamar ao palco este problema, nomeadamente na União Europeia. E não creio que seja paternalismo, é mesmo o sentimento de povo-irmão.

Têm chegado notícias de crianças que são capturadas pelos jihadistas. A Helpo, que dedica muito do seu apoio às crianças, apercebeu-se disso?
Essas notícias também só nos chegaram recentemente. Mas o que ouvimos há mais tempo é que muitas, sobretudo rapazes, eram aliciados para integrar as organizações. Porque os jovens não têm perspetivas de futuro. Nós falamos entre nós muitas vezes que este problema pode ser resolvido de duas maneiras: uma delas é a intervenção militar (que neste momento é necessária) e depois outra, a médio-longo prazo, é o investimento real na educação destas crianças e destas famílias. Porque grande parte deste problema nasce disto: é não ter perspetiva de futuro, quando em paralelo está ali ao lado um grande investimento que vai trazer muita riqueza ao país, e estão a contratar-se muitas pessoas que têm que vir de Maputo, têm que vir do estrangeiro, porque quem está ali ao lado...se consegue lá um emprego é dos mais baixos, e isso não está a trazer riqueza às populações.

O vosso papel é determinante no apoio ao ensino secundário, através das bolsas. Ainda estamos nesse ponto?
Quando as crianças deixavam a sétima classe (que é o fim da escola primária) por um lado tinham a barreira geográfica, porque não há escolas na proximidade. Além disso era preciso pagar cerca de 10 euros pela matrícula, mais 10 pelo uniforme escolar, e ainda o valor do material. E só é isso é razão para deixar de estudar em Moçambique. Significa que as meninas, com 14 ou 15 anos, são entregues ao casamento, os rapazes ficam sem fazer nada, e são presa fácil para os jihadistas. E é importante referir que isto não é uma questão religiosa, até porque a maior parte das vítimas são muçulmanos. Alguém fez uma leitura completamente enviesada do que vem no Alcorão. E quer impor uma lei islâmica, contra o Estado moçambicano. Depois levam tudo à frente. Há relatos de mesquitas destruídas, também.

Mantém-se o vosso programa de voluntariado internacional?
Nós temos uma equipa muito grande em quatro províncias, mas na sua maioria não são voluntários. São quadros (sete portugueses, um brasileiro e 11 moçambicanos), porque à conta da covid-19 deixámos de receber voluntários. Temos neste momento apenas uma, com 64 anos.

Como é que foi parar à Helpo?
Em 2010, eu já estava ligado à Helpo, e era professor de educação física, em Sintra, e tinha pedido uma licença sem vencimento para fazer um mestrado na Finlândia (porque namorava com uma rapariga finlandesa). Fui aceite, mas tivemos uma crise num dos recursos humanos da Helpo - uma pessoa que ao fim de um mês recebeu um convite para uma outra organização - e a Joana Clemente, nossa coordenadora geral, pediu-me que fosse para Moçambique, supostamente por um ano. Costumo dizer que esse ano ainda não acabou...porque passaram 11 anos. É um trabalho fascinante. Se eu ganhasse o Euromilhões, pagava para fazer este trabalho.

Mesmo nestas circunstâncias particulares?
Mesmo assim.

Nunca sentiu medo?
Houve um dia em que senti que não estava seguro. Foi em 2019. Numa das vezes que fui a Mocimbua da Praia, entrei 22 km para dentro do mato, para uma zona que hoje é reconhecida como uma das bases destes insurgentes. E eu tive a sensação, ao longo da estrada, de que não devia estar ali. Foi a única vez em que me senti inseguro. Mesmo em Pemba, ainda recentemente, houve uma pessoa que entrou dentro de uma zona militar. Era um domingo, e os militares não estavam fardados, apesar de armados. E mandaram parar o senhor, ele assustou-se e fugiu, eles dispararam um tiro para o ar, e num instante correu que Pemba já estava a ser atacada. As pessoas que estavam comigo mostraram-se assustadas, mas eu faço sempre um esforço para manter a calma.

É preciso muito sangue frio? Todos os dias?
Sim, sempre. Porque é muito fácil circularem rumores.

Parece-lhe que esta instabilidade pode ter um desfecho a breve prazo ou, por outro lado, pode estar para durar?
Eu sou muito otimista, mas neste caso o meu otimismo está a ser esmagado por aquilo que os especialistas dizem: quando este tipo de ataques não é controlado durante três anos, duram pelo menos 14 ou 15 anos.

E isso não é motivo para o demover e para regressar a Portugal?
Enquanto eu me sentir seguro e sentir que o nosso trabalho é essencial, estarei lá. O nosso foco é a educação e a saúde materno-infantil. E agora entrámos numa terceira vertente: nas entrevistas com as famílias notámos que todas elas e as crianças estão muito traumatizadas. E por isso não só estamos a fazer apoio psico-social, como chegou agora a Maputo uma colega que foi coordenadora da Helpo em Cabo Delgado, que é psicóloga, tem especialização na área, e vai agora para lá trabalhar junto das famílias e dos nossos colaboradores, para podermos começar a fazer a identificação e o encaminhamento. O Hospital de Pemba tem quatro psicólogos e dois psiquiatras, mas as pessoas não procuram. Porque não sabem que aquilo que sentem pode ser tratado.

dnot@dn.pt

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