Nem sempre é o padre a rezar a missa
Leigo
- Não recebe o sacramento da ordem, como o padre, mas tem uma função dada pelo bispo
- Pode orientar celebrações da palavra, mas não pode confessar nem celebrar missa
- Pode ser casado, ter filhos e tem uma formação que varia de diocese para diocese
"Bom dia, sr. doutor", saúda uma senhora, abeirando-se de António Dias, assim que este sai do carro em direcção ao largo. "Bom dia, sr. padre", atira uma criança, escapando-se, entre risos, para dentro da igreja. Passam 40 minutos das 11.00 e António, que já vai atrasado para a celebração das 11.30 no Mogadouro, recebe com sorrisos os cumprimentos distintos que lhe são dirigidos por quem aguarda a sua chegada para iniciar a celebração. "Eles sabem que não sou padre, mas são malandrecos e metem-se comigo", desabafa ao DN, dirigindo-se à sacristia em passo apressado para vestir o traje e começar a cerimónia.
É domingo mas hoje não haverá missa nesta aldeia do concelho de Soure, apenas uma celebração da palavra orientada por este cristão a quem o bispo atribuiu uma missão especial. A impossibilidade do pároco chegar a todas as capelas da paróquia, e a necessidade de os cristãos celebrarem o domingo, levou os leigos, simples cristãos, a assumirem a função. Na prática, a cerimónia é semelhante: tem orações iniciais, leituras, homilia e cânticos, mas não há consagração, o momento essencial da missa, em que, antes de tomarem a hóstia, os cristãos crêem que o pão e o vinho se transformam em corpo e sangue de Cristo, algo que só o padre tem poder para fazer. As hóstias são distribuídas na mesma aos crentes na cerimónia, mas foram consagradas anteriormente e transportadas numa pequena caixa.
A semelhança desta cerimónia com a missa propriamente dita, que o padre José Cunha vem celebrar em média uma vez por mês, pode suscitar confusões aos mais distraídos e menos esclarecidos. Mas para António Dias, a missão desempenhada há mais de vinte anos é clara: "animar o domingo das comunidades, o dia fundamental da vida de um cristão". E a aposta nos leigos para esta missão, diz este homem de 64 anos, pai de duas filhas e avô de três netos, "não tem só a ver com a falta de padres mas com a necessidade da Igreja ir ao encontro das pessoas". No percurso que agora faz de carro entre os vários lugares da paróquia, recorda o tempo em que percorria a pé este caminho para ir à missa em Soure. "Hoje é a Igreja a ir ao encontro das comunidades."
Ainda não é meio dia e António já vai na terceira celebração desta manhã que começou bem cedo na aldeia do Sobral. Os timings são apertados e não dão para grandes convívios. É chegar, estacionar, distribuir uns beijos e abraços e ir direito ao sacrário, local onde se guardam as hóstias que já vêm consagradas. Na sacristia, António coloca a veste branca igual à dos acólitos, seus ajudantes, e em tom descontraído dá-lhes as últimas orientações.
Hoje é um dia especial pois calhou ser o leigo António, entre os doze que têm a mesma missão, a celebrar a palavra em Simões, aldeia que o viu nascer. "Eu vou fazer a leitura, mas é a versão longa ou curta?", pergunta João, seu afilhado e um dos acólitos que ajudará na celebração, para a qual estão todos muito agitados. "Não te preocupes, alguma coisa eu ajudo-te", sossega-o António, aproveitando para se meter com o estudante de medicina, perguntando-lhe para quando um médico em Simões. Tudo a postos e António entra na capela, atrás de Joana, Cátia e João, os seus ajudantes de serviço, ao som das vozes arrastadas que entoam os cânticos dominicais.
O frenesim das conversas que agitaram o convívio matinal cá fora apaga-se e o silêncio só é quebrado pelo chilrear incessante dos pássaros, animados pelo sol de verão que chegou em tempo de Inverno, e pelo ruído da lambreta de um vendedor que prepara a banca de tremoços para entreter o estômago de quem vai sair da "missa". Lá dentro, a pregação de António, a propósito do terceiro domingo da Quaresma, recorda que é tempo de oração, penitência e jejum e que "a caminhada para a Páscoa é um convite à purificação do coração e de tudo o que impede de chegar a Deus".
À saída, entre a gente da terra que se desfaz em elogios a António, está Maria Helena, mulher deste reformado do sector bancário. "Ele ama o que faz e cedeu ao chamamento de Deus. Há anos que a nossa vida se organiza em função disto", conta, orgulhosa da opção do marido. É hora de ir fazer o almoço, enquanto António vai ainda pregar para outro lugar.
A disponibilidade e a entrega a cem por cento à Igreja, que o sacerdócio exige, não são conciliáveis com mulher e filhos, por isso os padres são celibatários e assim devem continuar, considera o cónego Sertório Martins, vigário episcopal de Coimbra, diocese onde o trabalho dos leigos está muito enraizado. Mas, prossegue, não é por não poderem ser padres que os leigos, casados ou solteiros, não devem assumir as suas responsabilidades, que são muitas e não menos importantes. "São diferentes. A Igreja não faz nenhuma concessão ao dar-lhes a missão de celebrar a palavra" diz o pároco da Sé Nova, o primeiro a lançar este desafio aos leigos.
Foi há 30 anos, em Oliveira do Hospital, que o padre Sertório viu três colegas adoecerem e os crentes ficarem privados da missa. "Disse às religiosas que era impossível lá ir, escrevi o que haviam de dizer, pedi-lhes que fizessem leituras e orientassem a celebração. Depois comecei a trabalhar com os leigos."
O aumento das exigências e a dificuldade em garantir a missa em todas as comunidades, levou o bispo a pronunciar-se sobre a celebração do domingo na ausência do padre numa nota pastoral em 1980. Hoje na diocese há 120 padres, 100 ministros da palavra e leigos altamente comprometidos que fazem celebrações, funerais, distribuem a comunhão, animam grupos e ajudam na gestão administrativa paroquial.
A diminuição do clero é evidente e, diz, não tende a ser invertida: "Quando fui ordenado na Pampilhosa havia 9 padres para 12 paróquias. Hoje são dois. As pessoas continuam a exigir a presença do padre". O resultado é um desgaste enorme dos sacerdotes, e um risco de estes perderem a disponibilidade mental para a missão. "As pessoas acham que o padre deve fazer tudo. Mas temos de ser libertos para fazer aquilo que nos é específico: acolher as pessoas, acompanhar quem sofre, cuidar a parte espiritual", diz o cónego Sertório, consciente da dificuldade, mas confiante: "Hoje há padres novos que fazem o trabalho de cinco!"
Padre rali
- Recebe o sacramento da ordem, tem de ser celibatário e é o único que pode celebrar a missa
- Orienta todas as celebrações (baptismos, funerais, casamentos) mas a missão essencial é acompanhar espiritualmente os fiéis
Paulo Gerardo não faz o trabalho de cinco. Mas quase. Juntamente com o recém padre João, tem sete paróquias, em nove freguesias na zona de Óbidos. E se, já diz o ditado, "paróquia viva, pároco morto", de cansaço, entenda-se, aqui a vida corre depressa, é estafante.
O domingo começa cedo, pois o rali paroquial, como dizem na brincadeira, tem de levar Paulo a celebrar quatro missas. Às 8.35, o carro já está a trabalhar e de casa, na Amoreira, sai disparado para a Usseira, paróquia onde os crentes aguardam no largo. Pormenores de última hora, vestir-se, distribuir o jornal da diocese, trocar impressões com catequistas e responsáveis da equipa de animação local, e está na hora de subir ao altar. Uma hora depois, deixados os avisos, e trocadas algumas palavras rápidas com alguém que se atravessa no caminho, está na altura de entrar no carro, e seguir viagem. Não sem antes tomar um café rápido, em pé, e enquanto larga uma moeda para comprar uma rifa a uma criança.
Há dois anos que Paulo anda nesta lufa-lufa, numa tentativa de dinamizar um grupo de paróquias meio adormecidas. "Ainda não estamos em velocidade de cruzeiro. Mas queremos criar uma dinâmica interparoquial, sem que cada paróquia perca a identidade", explica, sublinhando que o truque é fomentar a relação entre as pessoas. "Ser cristão é viver em relação", foi o slogan do ano pois, diz, "a Igreja existe para levar o evangelho e para que o relacionamento entre as pessoas seja mais fraterno e humano". Por isso, em cada paróquia criou-se o grupo de mensageiros que levam os convites da igreja de casa em casa.
A resposta à falta de padres, afirma, "passa também por contar mais com os leigos. É difícil comprometer as pessoas, é verdade, mas às vezes também não é assim tão difícil como se apregoa", diz, no caminho sinuoso até ao Vau, onde já está tudo a postos para a missa. "O que é a quaresma?", interpela os mais pequenos na homilia, levando na volta a resposta: "o tempo em que comemos menos doces e guardamos o dinheiro para dar a quem mais precisa", diz uma criança na fila da frente.
Cativar os mais novos é outro objectivo desta equipa de dois padres, hoje desfalcada porque o mais novo está num retiro. O que passa por pô-los a participar na missa, preparando as leituras e expondo a mensagem em cartazes e frases simples. "Nem sempre é fácil", confessa Paulo Gerardo, já a entrar no carro para se dirigir à paróquia principal: Óbidos.
Hoje é um daqueles dias em que entrar na vila muralhada é quase missão impossível, pois o Festival do Chocolate faz rumar a Óbidos milhares de pessoas. A missa é ao meio dia, meia hora depois de acabar a do Vau, a dez quilómetros de distância, mas o drama é mesmo estacionar e correr até à Igreja de S. Pedro, abrindo caminho entre a multidão. Aqui a audiência é mais distinta, a igreja maior e com direito a visitas turísticas, mas a mensagem a pregar é a mesma: tempo de Quaresma, tempo de oração, penitência e jejum. No fim, mesmo com a barriga já a dar horas, é preciso conversar com os crentes, acertar assuntos com o diácono, e até dar uma palavra de conforto a um paroquiano que parece não estar bem.
Ao fim da terceira missa, a paragem é no restaurante, onde ao padre Paulo se junta para o almoço o colega que veio de Lisboa dar uma mãozinha na ausência do padre João. Também aqui o descanso é relativo, pois é preciso cumprimentar, dar uma palavra de atenção, atender o telemóvel. "Costumo dizer às pessoas que tenho tempo para tudo, pode é não ser quando elas querem", explica o padre que, além das missas, tem de arranjar horas para confessar, visitar doentes, ouvir pessoas, orientar grupos, preparar encontros e até dirigir obras na igreja. Na vida de pároco, não há escritório, rotinas, nem expediente mas, diz, devia sobrar mais tempo para ler e rezar.
Como hoje não é dos domingos em que a tarde fica livre, é preciso celebrar mais uma missa no Sobral da Lagoa às 15.30. As fatiotas mais aprumadas e a agitação no átrio revelam que qualquer coisa está para acontecer. É a benção dos bebés, cerimónia que percorre todas as paróquias, em alusão a um episódio da vida de Jesus, e que enche a igreja. Pelo menos, hoje, que é dia de festa.
Diácono
- Recebe o sacramento da ordem como o padre, mas tem funções diferentes dentro do clero
- Orienta funerais, celebrações da palavra, baptismos, mas não confessa nem celebra missa
- Pode ser casado, ter filhos e deve ter autonomia financeira (exercer uma profissão)
A missa está a ser orientada pelo padre Zé, mas na hora de falar aos fiéis, é Duarte João que sobe ao ambão para ler o evangelho e pregar a mensagem, fazendo, ao longo de 20 minutos, uma retrospectiva da Quaresma. À primeira vista, as vestes iguais, roxas por ser um tempo litúrgico especial, e a mesma postura no altar, podiam fazer crer que em Alenquer há padres com fartura, até permitindo disponibilizar dois na mesma missa. Mas não. Os dois sacerdotes têm missões diferentes, e neste caso, Duarte, enquanto diácono, outra figura da hierarquia da Igreja, está a ajudar o padre Zé, que sofreu uma paralisia facial.
"Costumo dizer que ele é o meu braço direito e esquerdo", comenta, em tom de brincadeira, o padre no final da missa na igreja de S. Pedro, enquanto Duarte se prepara para celebrar o baptismo da pequena Matilde. "Se já me ajudava antes de ser diácono, agora foi só formalizar o que já acontecia", explica o pároco que o viu crescer, casar e ser pai de três filhas.
O diaconado permanente é um ministério que exige o sacramento da ordem como têm padres e bispos, e está a ressurgir em força, principalmente em Lisboa, onde já foram ordenados 70, mais do que em todo o País. "Quando o padre era uma espécie de faz- tudo e não havia componente laical, à mínima coisa batia-se à porta do padre. Agora, a escassez fez despertar outros papéis que já existiam mas não estavam muito ocupados", explica Duarte João, engenheiro electrotécnico, ordenado há cinco anos. Os diáconos podem ser casados, devem ter profissão, pois não são remunerados. Em Lisboa, passaram quatro anos desde o convite do bispo que surpreendeu Duarte a meio duma reunião, até ao assumir de funções: celebração de baptismos, funerais ou casamentos. Curiosamente, o que mais o aterrorizava, funerais, onde se estreou nas férias do prior, é o que mais gosta de fazer, por ser "uma oportunidade singular de ajudar as pessoas". Em sentido oposto, são os casamentos que lhe dão menos gozo, alguns, diz, meros pretextos para almoçaradas. "Sinto-me a pregar para os peixes."
"O diácono não é um minipadre nem um super leigo. Nem um funcionário do religioso, simples ajudante do padre. O que ele faz decorre do que ele é", explica Duarte João, que há anos trabalha com o padre Zé na preparação da liturgia, da catequese ou dos acólitos. "Temos a mesma orientação, captamos os problemas com a mesma sensibilidade. Se não fosse assim não fazia sentido. Nem imagino o que seria um diácono tarefeiro", acrescenta o pároco, sublinhando, contudo, que Duarte lhe alivia bastante a carga. À mesa do restaurante com a família e o padre Zé, Duarte prossegue a explicação, sem desviar a atenção das filhas que aproveitam a presença de visitas para esticar a brincadeira: "o diácono, por ter vida familiar e profissional, também chega onde o padre não consegue". Mas à pergunta, "então porque não deixar os padres casar?", a resposta vem de Carla, a sua mulher: "só ia estragar tudo..."