"Nem neve nem chuva" travam o Serviço Postal, mas pode Trump minar o voto por correio?
Nas presidenciais norte-americanas de 2016, quase um quarto dos votos (33 milhões) chegaram por correio, mas em 2020, diante da pandemia do coronavírus, mais estados estão a autorizar que este tipo de votação não seja apenas para aqueles que consigam justificar a sua ausência no dia das eleições, mas para todos.
Na teoria, isso significa que 76% dos eleitores podem recorrer ao voto postal, algo que o presidente Donald Trump, que vota ele próprio por correio, não quer que aconteça, alegando que isso irá culminar na eleição "mais corrupta da história" dos EUA.
Para isso, lançou-se numa guerra aberta com os democratas, que o acusam de tentar criar obstáculos à votação ao cortar no financiamento do Serviço Postal dos Estados Unidos (USPS, na sigla em inglês). "Nem neve, nem chuva, nem calor, nem a escuridão da noite impedem estes mensageiros de concluir rapidamente as suas rondas", é o lema informal do USPS, estando inscrito na sede de Nova Iorque. Mas o que os elementos não conseguem talvez o presidente consiga.
"Eles precisam de dinheiro para que o serviço postal funcione e possa receber estes milhões e milhões de votos", disse Trump à Fox News. "Mas, se não receberem, isso significa que não pode haver voto por correio universal", acrescentou.
Em causa está a recusa do presidente em aprovar um pacote de estímulo específico para o serviço postal por causa do coronavírus, mas Trump terá mostrado abertura para dar luz verde a um pacote de estímulos maior (que tem estado bloqueado pelos democratas).
O USPS tem uma dívida de 160 mil milhões de dólares e avisou quase todos os estados de que não garante que os votos por correio cheguem a tempo de ser contados. Para o garantir, terá sugerido que os estados pagassem o serviço premium, que poderia quase triplicar os custos da operação.
Para fazer chegar o dinheiro aos correios (pelo menos 25 mil milhões de dólares), a líder da Câmara dos Representantes (de maioria democrata), Nancy Pelosi, convocou uma sessão de emergência para esta semana (os congressistas estão de férias) para que seja votada uma lei que permita "salvar o Serviço Postal", cujas raízes remontam a 1775, ainda antes da assinatura da Declaração de Independência.
Pelosi e o líder democrata no Congresso, Chuck Schumer, querem ainda ouvir o diretor-geral do USPS, Louis DeJoy, que foi nomeado em maio por Trump (para cujas campanhas doou dinheiro) e que é acusado de ser cúmplice do presidente. DeJoy terá ainda interesses financeiros em empresas concorrentes do USPS (ele nega) e os novos métodos operacionais que implementou parecem ter prejudicado o serviço de entregas - além do corte no pagamento de horas extraordinárias, 40 mil funcionários tiveram de ficar em quarentena por causa do coronavírus, segundo o sindicato.
Nos estados onde este é permitido, os eleitores podem pedir com antecedência para que lhes seja enviado um boletim de voto por correio. Em alguns estados é preciso um argumento para justificar a ausência no dia da votação, enquanto noutros tal não é necessário. Há ainda casos em que o boletim é enviado para todos os eleitores registados, sem necessidade de pedir.
Nestas eleições, o número de estados que permitem votar por correio sem justificação aumentou, com as autoridades a temer as consequências de longas filas à porta dos locais de votação a 3 de novembro e o impacto que tal pode ter na pandemia do novo coronavírus. O número de casos de covid-19 nos EUA aproxima-se dos 5,5 milhões (ao ritmo de quase 50 mil por dia), já tendo sido registadas 170 mil mortes.
Em 33 estados, os eleitores podem votar por correio sem apresentar uma razão ou simplesmente usar o covid-19 como desculpa, bastando inscrever-se - em nove, todos os eleitores vão receber automaticamente o formulário para requerer este tipo de voto.
Noutros nove estados e na capital, Washington D.C., os boletins de voto vão ser enviados para todos os eleitores, sem que eles peçam - nas eleições de 2016, só cinco estados o fizeram. Finalmente, oito estados exigem uma razão para além do novo coronavírus para autorizar o voto por correio.
No total, mais de metade dos estados alargaram o acesso ao voto por correio para as eleições de 2020 e, segundo os cálculos do The New York Times, 76% dos eleitores podem neste ano votar desta forma.
O boletim que chega pelo correio inclui dois envelopes. Um onde colocam o voto e outro onde assinam, garantindo assim que o voto continua secreto, mas que são eleitores registados. E pode ser devolvido pelo correio ou colocado em urnas apropriadas no dia da eleição ou até antes, dependendo do estado.
Ao receber o voto, as autoridades conferem o nome do eleitor que está no envelope de fora e se foi autorizado a votar por correio, guardando o envelope de dentro para abrir na noite eleitoral e ser contabilizado junto com os votos que forem colocados nas urnas.
Nos estados que autorizaram o voto por correio durante as primárias para escolher os candidatos à Casa Branca e a outros cargos eleitos, houve um aumento da participação eleitoral. Nos estados em que era preciso justificar este tipo de voto, a participação manteve-se semelhante à de 2016.
Os especialistas acreditam que a participação eleitoral vai aumentar nestas eleições e que o recurso ao voto por correio resultará num aumento exponencial.
Não há provas de que venha a beneficiar os democratas, como os aliados de Trump parecem temer - de facto, um estudo da Universidade de Stanford mostra que não há vantagem para nenhum partido. Mas há uma sondagem do Instituto Pew que mostra como uns e outros preferem votar.
Segundo esta sondagem, a maioria dos eleitores registados que apoiam Trump ou que estão a pensar apoiá-lo preferiam votar presencialmente nas presidenciais (80%), quer no dia da eleição (60%) quer antecipadamente (20%), com apenas 17% a dizerem preferir votar pelo correio. Já a maioria dos que apoiam o democrata Joe Biden ou pensam apoiá-lo dizem preferir votar por correio (58%). Quase metade (49%) dos eleitores esperam dificuldades na hora de votar.
Se entregar boletins a todos poderia beneficiar o eleitorado que normalmente vota em menor número (jovens, pessoas com rendimentos baixos, minorias ou pessoas sem acesso a meios de transporte), que podem optar por votar nos democratas, os especialistas lembram também que pode beneficiar os republicanos, ao chegar à população mais idosa, com dificuldades de mobilidade, que normalmente vota nos conservadores.
A dúvida é se o sistema, originalmente desenhado para lidar com alguns milhões de votos (foram cerca de 33 milhões em 2016), consegue aguentar com o dobro ou o triplo. E há ainda a ter em conta o facto de vários votos poderem ser anulados, por mau preenchimento dos boletins.
Durante as primárias, houve problemas em vários estados, como em Nova Iorque, onde foram precisas seis semanas para contar os votos e declarar o vencedor. Nas presidenciais, em estados onde a diferença de votos entre os candidatos for reduzida, isso pode atrasar a altura de saber quem ficará na Casa Branca nos próximos quatro anos.
E adivinham-se vários recursos nos tribunais caso sejam detetados problemas, pondo ainda mais em causa o resultado. Os defensores do sistema lembram que qualquer tentativa de fraude é mais fácil de descobrir e, consequentemente, levar os culpados à justiça, já que há um rasto de documentos a servir de prova.
O presidente norte-americana está contra os estados que resolveram enviar boletins para votar por correio ou até mesmo requisições para o poder fazer a todos os eleitores, independentemente de estes pedirem ou não. Daí que não esteja disponível para abrir os cordões à bolsa e financiar o USPS, esperando criar dificuldades para a votação por correio.
"Com a votação universal por correspondência (não a votação por ausência, que é boa), a de 2020 será a eleição mais imprecisa e fraudulenta da história. Será um grande embaraço para os EUA", escreveu no Twitter no final de julho, questionando depois se não seria melhor adiar as eleições previstas para 3 de novembro (algo que não tem o poder para fazer) até as pessoas poderem votar em segurança.
O próprio presidente, que desde o ano passado está inscrito na Florida e já não em Nova Iorque, já votou em pelo menos três ocasiões por correio ou com antecedência (neste caso, foi buscar o boletim às autoridades e devolveu-o antes do dia das eleições), depois de requerer essa possibilidade por não poder estar presente no dia da consulta eleitoral. Isso aconteceu em 2017 nas eleições para a presidência da Câmara de Nova Iorque, no ano seguinte nas eleições intercalares e, já neste ano, nas primárias na Florida.
Para novembro, Trump (tal como a mulher, Melania) já pediram para votar por correio. Numa conferência de imprensa no sábado, o presidente disse não ter problemas com este tipo de voto, desde que seja justificado, por ausência do local de votação, como é o seu caso. O problema é com o voto universal.
"O voto por correio universal vai ser catastrófico, vai tornar o nosso país na chacota do mundo inteiro", indicou, alegando que com este método "nunca vamos saber quando as eleições acabam". O presidente alegou que o resultado das presidenciais pode não ser conhecido "durante meses ou anos, porque estes votos vão ficar perdidos, vão desaparecer".
Além disso, Trump alega que, quando os boletins são distribuídos universalmente, pode haver mais fraude - já aconteceu no passado, em casos pontuais, o "engordar" das urnas - e até que as pessoas podem acabar por votar duas vezes. Mas não parece haver provas nesse sentido. O estado do Oregon, que já envia os boletins de voto para os eleitores desde 2000, só contabilizou 14 tentativas de fraude por correio desde então.
Trump também já atacou os estados onde são colocadas caixas para os eleitores depositarem pessoalmente os boletins de voto que receberam por correio. "Quem é que vai 'recolher' os boletins e o que pode ser feito a eles antes de serem validados? Uma eleição fraudulenta? Tão mau para o nosso país. Só votos por ausência são aceitáveis!", escreveu no Twitter.
Além da resposta de Pelosi no Congresso, a querer uma votação de urgência e um inquérito ao responsável pelo Serviço Postal, os críticos do presidente alegam que Trump está apenas a querer gerar medo entre os eleitores, numa altura em que as sondagens o colocam atrás do democrata Joe Biden em vários estados considerados chave para conseguir a reeleição.
Biden reagiu a toda a polémica no Twitter: "Votar por correio é seguro. E não confiem na minha palavra: confiem na do presidente, que pediu o seu voto por correio para as primárias da Florida", escreveu.
Já o ex-presidente Barack Obama, de quem Biden foi vice-presidente, chamou a atenção para a importância do Serviço Postal. "Toda a gente depende do USPS. Os seniores para receberem a sua segurança social, os veteranos para as suas receitas, pequenos negócios que procuram manter as portas abertas. Eles não podem ser danos colaterais de uma administração mais preocupada em suprimir os votos do que em suprimir um vírus", escreveu.