Nem gato escondido… (1)

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As recentes "declarações conjuntas" subscritas pelo PS e PSD assumem iniludível significado político. A ostensiva carga cerimonial que se lhe quis atribuir e a relevância estruturante das matérias em causa não autorizam ilação diversa.

Na verdade, a denominada "descentralização" e o "quadro financeiro plurianual" não são meros domínios a que um pretextado "interesse nacional" convocaria. Não são matérias políticas neutras mas sim opções estruturantes: a primeira, porque inserida na estratégia mais ampla de reconfiguração do Estado sob a falsa invocação valorativa do poder local; a outra porque, a exemplo de instrumentos congéneres que o precederam, moldará para a próxima década um relacionamento não só financeiro mas também de nexo político com as orientações da União Europeia contrárias aos interesses do país.

Concentremo-nos, por razões de espaço mas também de proximidade, no primeiro lote, o da "descentralização", arrematado como seria expectável sem grande regateio.

Não nos perdendo em incursões filosóficas, seria legítimo convocar, ao serviço de um primeiro comentário, a aristotélica afirmação de que "o começo é metade de tudo". Não se percorrerá esse trilho argumentativo para lá do que é devido. Até porque a asserção invocada se funda numa reflexiva observação que parte de premissa que aqui não encontra lugar, a de que "o erro acontece, com efeito, no começo". Ora, só por manifesta imprudência e indesculpável precipitação se poderia admitir que se está perante o começo de algo ou na presença de imponderado erro.

Os manejos enrodilhados, quase sempre sobre o floreamento valorativo do poder local, que ao longo de quatro décadas têm unido estes dois partidos, para bloquear a efectiva descentralização e condicionar a autonomia local, são conhecidos. Um manejar acompanhado em permanência pela subversiva adulteração de conceitos, arremetidas legislativas ou mais densas manobras políticas. Porque a afirmação é controversa e não encontrará aclaramento suficiente no edifício da mera opinião, capaz de acomodar previsíveis contestações, passemos para o plano da necessária fundamentação.

Aqui ficam, com o desenvolvimento que o texto consente, as anotações mínimas que a circunstância requer para suportar o juízo crítico. A saber: o ginasticado exercício para confundir descentralização com desconcentração e transformar em sinónimos transferência de competências e descentralização; o infindável labor legislativo que tem ferido a autonomia local e sonegado recursos financeiros que lhe são devidos; ou os passos já situados num patamar de ousadia política como o que, em 1997, António Guterres e Marcelo Rebelo de Sousa deram para, também em celebrado acordo, se consumar um golpe constitucional contra a regionalização para impedir, com a obrigação referendária, a criação das regiões administrativas então iminente.

O que está em causa não é qualquer propósito descentralizador. O que foi subscrito por Rio e Costa é um processo de desresponsabilização do Estado, de transferência de encargos para o poder local, de comprometimento de funções sociais (na saúde, na educação, na habitação ou na cultura) que só o Estado pode assegurar e um convite antecipado, que alguns usarão como pretexto, à sua privatização. Com prejuízos para a população e para o seu direito de acesso a serviços públicos. O que agora se desenha é, tão-só, uma apresentação mais colorida da negritude do que em 2014 o governo de Passos Coelho e Portas desenharam no guião para a reforma do Estado como "processo ambicioso" determinado pelo objectivo agora renovado de "um envelope financeiro sem aumento da despesa pública". O que desinvestido e subfinanciado está, assim continuará! Ao mesmo tempo que prossegue a acção para expropriar os municípios de competências próprias no domínio da água na mira da sua futura privatização na qual vislumbram um negócio de mais de dois mil milhões de euros.

O que se quer é impedir a descentralização. Reinvocando estudos académicos e enredando--a em infindáveis avaliações "independentes". São conhecidos os inúmeros expedientes que têm perpetuado o seu adiamento. Desde os "livros brancos" da regionalização dos governos da AD às consultas promovidas pela Assembleia da República às assembleias municipais na década de 80. Poupe-se em estudos. Será suficiente investir-se na leitura e cumprimento do texto constitucional. Instituam-se as regiões administrativas, reponham-se as freguesias extintas, aplique-se a Lei das Finanças Locais e assim poupa-se tempo e não se desperdiçam neurónios. E, já agora, sem desprimor do labor de geógrafos ou cartógrafos, dispensando recurso a instrumentos de geolocalização ou a ensaios de semeio (ou leilão) de ministérios pelo país, talvez se deva começar por repor o conjunto de direcções regionais que extinguiram e reactivar as centenas de serviços que encerraram. Não se invocará, a propósito, a figura do gato que escondido deixara o rabo de fora, tão-só porque o tamanho do felino dispensa o esforço. Como se verá.

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