Negócios de lana-caprina
Cada um é como é. Nem sempre se consegue resistir sem pestanejar ao que aí se ouve. Por essa razão, lida a peremptória afirmação de um ex-ministro da Economia (face à evidente deterioração do serviço público postal e à degradação da própria empresa) de que a privatização dos CTT tinha sido "boa e oportuna", se está de regresso ao tema das privatizações. Um impulso que ainda por aqui vacilou dada a legítima hesitação de quem, antes de se pôr a escrever, deve ter a prudência de saber se o que se vai pôr a comentar é para levar a sério. Vencida a dúvida, admitido que não se tratou de uma daquelas graçolas de fim-de-semana e identificado autor, não há como passar ao lado. Ficámos a saber que Pires de Lima, ministro do governo PSD-CDS, não só se sente "orgulhoso" do rasto de destruição pública a que com Passos Coelho, Cristas e Sérgio Monteiro se dedicaram com o que privatizaram, como se confessa martirizado por não ter concluído tal obra. Registe-se a franqueza e o espírito de equipa: sem subterfúgios ou conversas de "meias-tintas" assume-se como bom o crime económico do governo por onde passou e ainda se distribuem louros por alguns outros que, tendo vendido a alma ao diabo, no caso o país à voragem estrangeira, foram devidamente premiados para prosseguirem a sua actividade de leiloeiros.
Com sentido de justiça devida não se carregará para as costas deste as culpas de muitos outros. Joga a seu favor não ser pioneiro de um processo privatizador que, constituindo-se como instrumento de reconstituição do capital monopolista e da restauração do seu poder, deu no que está à vista: alienação de recursos públicos, transferência para mãos privadas de alavancas essenciais ao desenvolvimento do país, colocação ao serviço de interesses alheios aos nacionais de comandos económicos estratégicos. O ex-ministro sempre poderá invocar que quando se dedicou a desbaratar quase tudo o que restava já muito caminho havia sido feito por outros seus congéneres de governos do PSD e do PS, com ou sem o CDS à ilharga. Não nos fixemos pois na parte, porque não são os indivíduos em si que importa para o caso, para nos concentrarmos no todo.
A superficialidade com que falam de privatizações, como as arrumam na parcela dos créditos sem olhar para a coluna do débito mesmo que ao lado daquela, como as resumem a um regateio de preços ao estilo de vendedor de feira, dá para perceber nas mãos de quem o país tem estado. A entrega, expressão mais rigorosa do que venda, de empresas estratégicas essenciais à soberania nacional é assim assumida, no pensar deste ex-ministro, como meros "negócios logísticos", como quem diz pormenores de lana-caprina. Em bom rigor é a isso que se dedicam, à venda de lã de ovelha ao preço da da cabra, tudo a custo de saldo. Sim, porque a oferta seria, por mais que o desejassem, acto excessivo. Em rigor um mercado de bagatelas a que se têm dedicado e em que o único objectivo palpável parece ser o de tosquiar o país e engrossar o novelo do capital privado.
Não valerá a pena descer ao patamar dos argumentos do ex-ministro. Se não percebe "porque haveria de ser público um negócio de entrega de cartas" a culpa é do casting. Pelo que, para lá do que significou o encerramento de centenas de postos de correio, o despedimento massivo de trabalhadores ou a fixação de prazos de entrega de correio de 15 dias, tentar explicar-lhe o valor estratégico do serviço postal e de todas as funções que lhe estão associadas (que só se recuperam com a reversão da privatização dos CTT) seria desperdiçar tempo e preciosas linhas desta crónica. Se ainda hoje se derrete de orgulho pela alienação da TAP -- uma companhia de "bandeira" prestigiada e com papel de serviço público nacional -- a privados que a estão a transformar, a partir de interesses próprios, numa empresa tipo low cost e consegue, sem se rir, afirmar que agora "voa melhor", só se pode concluir que por cá o puseram em terra para ver passar aviões. Se nos dias que correm não viu o que significou a destruição da PT e a alienação total de um sector estratégico como o das telecomunicações, não invocaremos o seu valor para a soberania nacional, que exigiria níveis mais exigentes de cognição, mas tão-só esta revoltante constatação que meses após a tragédia dos incêndios se mantenham por recuperar em numerosos locais as redes de comunicação fixa. Tudo minudências para quem se dedica a negócios de monta.
A resposta do ex-ministro, que deu alma a este texto, foi justificada, face ao questionamento desse crime económico que constituiu a alienação dos CTT, com o argumento de que "quem não se sente não é boa gente". Não é de questões de carácter, apreciação de traços de personalidade ou avaliação de atributos pessoais que importa tratar. São do domínio da política as opções que relevam para o efeito. Sem perder de vista que é sobre a imensidão da boa gente deste país que se sente os desmandos dos que, em vez de tratar do país, se ocupam dos interesses alheios.