Negócio com PCP "dá" a imobiliária mais-valia de quatro milhões

No dia do contrato de permuta com o PCP, a imobiliária EGIC contraiu um empréstimo de quase cinco milhões de euros cuja garantia foi o lote de terreno que era do partido. Este aceitou em troca bens cujo valor atribuído no contrato é de 800 mil euros, possibilitando assim à imobiliária uma mais-valia de milhões. Confrontado com o facto, o PCP declinou responder.
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Quando em julho de 2014 o Partido Comunista Português comprou a Vivenda Aleluia, em Aveiro, da qual era arrendatário, ao seu proprietário Gervásio Aleluia, pagou 350 mil euros pelo edifício de 160 metros quadrados (m2), mais extenso jardim (340 m2), no qual funcionava desde 1974 o seu "centro de trabalho". Quatro anos depois, já estava a pedir informação sobre a possibilidade de mandar abaixo esta casa de 1929, um dos ex-líbris Arte Nova da cidade, cuja conservação o arquiteto Siza Vieira reputou de "imperiosa", e erguer um prédio no local, fazendo contactos a esse propósito com a EGIC-Empresa de Gestão Imobiliária e Construção (ver o outro texto no DN sobre o caso).

Porém a mais-valia de 129% face ao que o partido pagou em 2014 pela propriedade empalidece face ao valor atribuído pela Caixa Geral de Depósitos ao bem que o partido detinha: no mesmo dia e ato do contrato de permuta, 26 de junho de 2023, a imobiliária efetuou, como demonstra o documento registado na Conservatória do Registo Predial de Aveiro, uma hipoteca naquele banco, garantida pelo lote de terreno que acabava de adquirir, no valor total de quatro milhões, novecentos e sessenta e quatro mil e setecentos e doze euros - mais de seis vezes o valor atribuído às frações "trocadas" com o PCP.

Ou seja, apresentando como garantia a Vivenda Aleluia, mais o projeto de construção licenciado em nome do PCP - como informa a EGIC, garantindo ter sido com procurações passadas pelo partido que a empresa e o arquiteto que esta contratou trataram de tudo - para aquele espaço, a Empresa de Gestão Imobiliária e Construção pediu na mesma ocasião dois empréstimos: um de 800 mil euros, exatamente o valor que é atribuído às frações com que o PCP fica, e outro de dois milhões e novecentos e cinquenta mil euros - ao todo, três milhões, setecentos e cinquenta mil euros.

A diferença para o valor total atribuído pela CGD ao terreno - quatro milhões, novecentos e sessenta e quatro mil e setecentos e doze euros - corresponde àquilo que num empréstimo se designa por "montante máximo assegurado": a soma do capital mais os juros remuneratórios, os moratórios e as despesas: tudo o que tem de estar abrangido pela garantia. Assim, no empréstimo de 800 mil euros o montante máximo assegurado é de um milhão e cento e setenta e oito mil e oitocentos euros; no empréstimo de 2 950 000 euros o referido montante é de 3 785 912 euros. A soma dos dois montantes máximos, como já referido, é de 4 964 712 euros - que a CGD considerará que o lote, com a autorização de construção, vale.

Fazendo as contas ao preço pelo qual estão a ser comercializadas as restantes 15 frações do edifício (excluindo as permutadas com o PCP), e que variam entre 620 mil (por um T4) e 310 mil euros (por um T2), esta imobiliária conta "encaixar" pelo menos 7 210 000 euros com as vendas.

O jornal perguntou a um representante de uma agência imobiliária que opera na zona qual o montante que atribuiria àquele lote de terreno. A resposta foi "um milhão e cem, um milhão e duzentos, por aí. Foi o montante pelo qual foi comercializado um terreno ao lado". Mas, precisa, "sem projeto aprovado. Como o projeto aprovado, valorizaria mais uns cem mil euros".

Questionada pelo DN sobre se considera que os 800 mil euros da permuta correspondem ao valor de mercado do terreno no qual vai implantar o edifício a construir, a EGIC responde: "O acordo estabelecido com o PCP foi efetuado, tendo em consideração valores de mercado, com base em permuta da área construída por área a edificar."

Confrontado pelo DN com a pergunta "Qual o motivo para o PCP viabilizar à imobiliária EGIC a obtenção de uma tão elevada mais-valia?", o PCP recusou responder.

Como já foi relevado no vasto noticiário publicado desde setembro sobre este negócio imobiliário do PCP, o edifício licenciado em seu nome e no seu interesse - já que fica com muito mais área coberta e bens mais valiosos - não inclui qualquer fração para arrendamento acessível ou para venda a custos controlados; em suma, não reflete a mínima preocupação com aquilo que o partido defende, no seu discurso político, dever ser acautelado na construção e reabilitação, nomeadamente nos centros das cidades: a função social da habitação.

Essa função social, como o PCP frisa no artigo 6º de um projeto de lei de 2018 - contemporâneo dos primeiros contactos do partido com a EGIC a propósito da Vivenda Aleluia e do pedido de informação efetuado à Câmara de Aveiro no sentido de saber se era possível erguer ali um prédio em altura - implica que, "sem prejuízo do direito à propriedade e à sua fruição, os titulares de imóveis ou frações autónomas para habitação que sejam detidos por entidades públicas ou privadas devem participar na prossecução do objetivo nacional de garantir a todos o direito a uma habitação condigna e de dimensão adequada."

Nesse mesmo projeto de lei (nº 1023/XIII, de 15 de outubro de 2018 e intitulado "Lei de Bases da Habitação"), o PCP também estabelece, no preâmbulo, o "objetivo estratégico" de, "a nível dos solos", "contrariar a especulação imobiliária e dar utilização e gestão pública às mais-valias decorrentes quer de intervenções sobre transformação de uso dos solos quer de planos de densificação e, ou, alteração qualitativa de uso do edificado".

Ora o projeto que o PCP negociou com a EGIC e que foi apresentado à autarquia de Aveiro, à qual preside desde 2013 o social-democrata José Ribau Esteves (eleito numa coligação PSD/CDS-PP), e por ela licenciado enquanto o PCP era o proprietário, é precisamente uma densificação e uma alteração qualitativa do edificado com muito significativas mais-valias. As quais, como se demonstrou, se dividem entre o partido e a imobiliária, numa operação que na perspetiva da "lei de bases da habitação" apresentada pelo PCP em nada contraria - antes dela beneficia - "a especulação imobiliária".

Esta operação imobiliária dos comunistas insere-se precisamente na descrição muito crítica que faz, no preâmbulo do projeto de lei citado, dos "processos de revitalização urbana em curso", os quais, garante, são "na generalidade conduzidos por investidores, que pelo seu poder financeiro e pela escala em que intervêm, comandam completamente o mercado da habitação, particularmente na perspetiva dos preços e na vertente crítica que é a do arrendamento". Para concluir: "Como é óbvio os objetivos destes investidores não são compatíveis com uma política de disponibilização de habitação para a larga maioria da população."

A contradição, evidenciada no negócio descrito, da prática face ao discurso político, e o caráter tão significativo das mais-valias que permitiu quer ao partido quer, sobretudo, à imobiliária, devem ser também apreciadas à luz da evolução da posição do PCP quanto à própria Vivenda Aleluia.

É que, como já foi noticiado, quando em 2006 o proprietário, Gervásio Aleluia, quis fazer precisamente o que o partido, então arrendatário (depois de ocupar o edifício em 1974, celebrou mais tarde um contrato de arrendamento cujos termos e data são desconhecidos - questionado sobre eles, o PCP recusou esclarecer) fez agora - demolir o edifício para construir no local um prédio em altura -, o PCP apoiou entusiasticamente a decisão do executivo PSD/CDS-PP de, por unanimidade, não autorizar.

O então presidente da autarquia, Élio Delgado da Maia, tenta explicar a diferença entre a decisão camarária de 2006 e de agora: "Éramos todos de Aveiro e a ideia era de que aquele era um edifício que representava a história da cidade e que era de preservar."

Uma perspetiva subscrita pelo PCP, através da voz do dirigente António Salavessa, que foi cabeça de lista da CDU nas autárquicas de 2005 e integrava à época o Comité Central do partido. Citado pelo Público em 14 de junho de 2006, Salavessa classificou a decisão camarária de "exemplar", frisando tratar-se de um imóvel de "valor incontestável" e esperar que a autarquia seguisse "o mesmo caminho em relação a outros imóveis de interesse arquitetónico que é preciso preservar".

Hoje, Salavessa, que é deputado municipal em regime de substituição, prefere não dar ao DN a sua opinião sobre a mudança de posição do partido. "As opiniões como sabe têm um contexto. No contexto em que foram proferidas, mantê-las-ia." O que mudou? "O que mudou é que eu tinha que expressar uma opinião nessa altura, e expressei-a, e não era só uma opinião pessoal, era coletiva. Houve um entendimento agora, de quem tem competência para decidir nas questões do património - o secretariado do Comité Central -, que terá avaliado os prós e os contras daquilo que foi feito e tomou a decisão de o fazer - e portanto, dentro dos princípios que são próprios do PCP, não tenho de a discutir." Mas se o partido comprou em 2014 para quatro anos depois querer demolir, mais valia não comprar, não? "Não comento."

Já Élio Maia comenta: "Se esta decisão viesse de um movimento capitalista era de esperar. Mas do PCP? Francamente. As pessoas de Aveiro estão chocadas."

Certificando ser a demolição do edifício uma perda para a cidade, o ex-autarca também considera que "o proprietário original foi claramente prejudicado nesta situação: dizem-lhe que não pode construir, o arrendatário compra-lhe um terreno que não tem autorização para construção, portanto vale muito pouco, a seguir o arrendatário consegue autorização e o terreno passa a valer não sei quantas vezes mais? Se fosse eu estava muito revoltado."

O DN procurou chegar à fala com Gervásio Aleluia, sem sucesso.

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