Timergara, noroeste do Paquistão, junto à fronteira com o Afeganistão. "Chego em finais de junho [de 2013]. Estão mais de 40 graus de dia, pouco menos de 35 à noite. Um calor que não deixa respirar, sobretudo para quem não está habituada a andar de cabeça e cara tapada. Começo a pensar como irei sobreviver dois meses a trabalhar aqui e nestas condições?" Quando aderiu aos Médicos sem Fronteiras (MSF), em janeiro de 2013, Maria Afonso, então com 30 anos e ainda uma interna de obstetrícia no Hospital de Santa Maria, achava que já estava mais do que preparada para o que iria encontrar no terreno. "Mas a verdade é que nunca estamos", admitiu mais tarde, num artigo que escreveu para a Acta Obstétrica Ginecológica Portuguesa, onde retratou os dois meses da sua missão no Paquistão.. Fazer partos de urgência, negociar com fações rebeldes, estar debaixo de fogo ou próximo da linha da frente dos conflitos. Estes são alguns dos retalhos da vida de um médico sem fronteiras. Mas Maria Afonso, obstetra, João Martins, economista e chefe de missão, e Maria Palha, psicóloga, preferem que para memória futura fique o registo da diferença que as suas missões fazem na vida de milhares de pessoas..Estes são três dos cerca de 80 portugueses que fazem parte dos Médicos sem Fronteiras (MSF), um número ainda assim insuficiente e que a ONG está apostada em fazer crescer nos próximos tempos: a organização não governamental criada há mais de 40 anos e que já foi galardoada com o Prémio Nobel da Paz publicou nas últimas semanas vários anúncios em sites de emprego nacionais a pedir desde técnicos de logística até psicólogos, enfermeiros e, em particular, médicos. A vinda, nesta terça-feira, a Portugal do diretor executivo da ONG, Joan Tubau, para participar em Telheiras no evento Trabalhar em contextos de crise/emergência humanitária, e a realização de uma ação de recrutamento em Lisboa no final deste mês provam esta aposta no país..[HTML:html|semfronteiras.html|420|1250]É que os médicos representam apenas um quinto do pessoal dos MSF (1607 de um total de 7698 profissionais). "Temos vindo a ter algumas candidaturas ainda que achamos que poderíamos obter muitas mais. A maioria das candidaturas que recebemos são de enfermeiros e psicólogos", explica fonte da organização, que ainda não tem gabinete permanente em Portugal. "As necessidades de recrutamento têm sido crescentes ao longo dos anos, não só pelas emergências humanitárias [como a recente crise dos refugiados ou a nova epidemia de ébola no Congo] mas também pela própria evolução da organização que tem vindo a contar com mais meios consistentemente de ano para ano, fazendo-nos assim ter uma maior capacidade de resposta." Cirurgiões e ginecologistas/obstetras são duas das especialidades mais procuradas..Cesariana logo à chegada.Quando chegou ao Paquistão em 2013, acabada de entrar nos MSF, Maria Afonso deparou-se com um hospital que servia mais de um milhão de pessoas e realizava quase 600 partos por mês, 17% dos quais cesarianas de carácter urgente ou emergente. Logo nesse primeiro dia em Timergara teve de fazer uma, numa maternidade que tinha 14 camas, por vezes ocupadas por duas grávidas em simultâneo. "No Paquistão, o maior problema é fazer as pessoas perceber que a gravidez dura nove meses, porque há uma grande pressão para se saber se o bebé é menino ou menina. Isso faz que muitas vezes vão a médicos privados ou comprem medicamentos para antecipar o parto. Temos muitos partos antes do tempo, os medicamentos provocam tantas contrações uterinas que muitas vezes o bebé não as consegue suportar e temos muitas mortes fetais, outras vezes as mulheres já tiveram muitos filhos e cesarianas anteriores e o que estas contrações podem provocar, num útero já muito enfraquecido, é uma rutura uterina, que pode acabar em morte fetal e morte materna. Muitas vezes já não há nada a fazer", conta Maria Afonso, agora com 35 anos, ao DN.. Em 2014, a taxa de mortalidade materna naquela região estava entre 260 e 700 por cada cem mil nascimentos nos hospitais públicos. A mortalidade neonatal era de 40 recém-nascidos por cada mil nascimentos. "Temos de nos lembrar que estava numa zona que é longe de Islamabade, na fronteira com o Afeganistão, com acesso limitado. Era preciso ter uma permissão especial do governo, porque era uma zona de transição dos talibãs, complicada em termos religiosos. Tinha de estar sempre tapada na rua." Ambiente pouco diferente do que encontrou do outro lado da fronteira, em Khost, Afeganistão, onde passou os três meses seguintes. "Também é uma zona complicada. Os MSF reconverteram um espaço abandonado numa maternidade que faz dois mil partos por mês, quase os partos anuais em Santa Maria. É uma baby factory. ". Regressou a Khost para nova missão em 2016 - "tenho sorte, o meu chefe vê com bons olhos estas missões e tenho as licenças sempre aprovadas" - e foi aí que viveu uma das experiências que mais a marcou. "Uma noite, uma senhora chegou à urgência de carro, há uma campainha para os casos de partos no carro. Basicamente, a família chega, põe o carro entre os portões, os homens saem, porque tem de se assegurar que o carro não tem nenhuma bomba. Um dos bebés já tinha nascido mas ela avisou de que eram gémeos e fizemos nascer o segundo bebé. Mas eu estranhei, porque mesmo aí a barriga continuava enorme. Ainda estava lá mais um! E assim fiz um parto vaginal de trigémeos do pé para a mão", conta a médica algarvia, nascida em Lagos, com um sorriso aberto na cara..Quatro dias debaixo de fogo. Mas porque não há mais médicos portugueses a aderir aos MSF? Desde logo porque é preciso tirar uma licença sem vencimento, e a aprovação pelas direções hospitalares é difícil, explicam ao DN, ainda para mais numa altura em que há poucos especialistas. Já os ordenados não são apontados como uma barreira. Nos primeiros dois anos os ordenados são iguais para todos, 800 euros, depois adequam-se à posição que se assume, explica João Martins, 31 anos, que já foi chefe de missão no Iémen e acabou de partir para o Congo para liderar outra. "Um salário de um enfermeiro não se deve distanciar muito do ordenado de um enfermeiro em Portugal", exemplifica.. João Martins é um dos portugueses da organização com maior experiência de conflitos armados. Desde 2014, já passou também por Angola, Sudão do Sul e República Centro Africana. Natural de Vila Nova da Barquinha, com o curso de Economia tirado em Coimbra, fez um mestrado na área da cooperação e desenvolvimento e o seu papel no terreno, além da coordenação de projetos, passa também pela negociação com os vários lados em conflito. "Em países como o Iémen, muito influenciados por atores internacionais, há sempre fações que olham com desconfiança para nós, mas esse é o meu trabalho, fazer perceber a nossa importância. Mas no Congo já podemos estar a falar de grupos criminosos, passa-lhes ao lado a necessidade de haver uma organização de ajuda humanitária.". João, como outros funcionários dos Médicos sem Fronteiras, relativiza o perigo das missões e diz nunca ter sentido medo, apesar de já ter estado debaixo de fogo. "No Sudão do Sul, a aldeia onde estávamos foi atacada e tivemos de nos resguardar no complexo das Nações Unidas e estivemos quatro dias debaixo de fogo." Perante estas situações-limite - "lembro-me nesse caso de uma mulher que tinha chegado com um tiro na cara e senti-me impotente. Vês-te a carregar corpos de pessoas ao final do dia, passas 12 horas por dia a ouvir morteiros e fogo cruzado" - há que encontrar um ponto intermédio em termos emocionais para lidar com as tragédias humanas. "No Sudão do Sul veem-se coisas que não esperamos, crianças com tétano é uma imagem complicada, inimaginável para muitos. Em Angola, quando houve a questão dos refugiados do Kasai, no Congo, estavam a chegar cerca de 500 mil pessoas por dia. O estado em que chegaram os primeiros, com cortes de catanas, baleados, crianças sozinhas... é complicado.". Além da exposição a situações traumáticas, o pessoal no terreno trabalha muitas horas seguidas, 12 a 15, em situações de emergência humanitária, seis dias por semana. No Afeganistão, Maria Afonso fazia turnos de 24 horas dia sim, dia não. Ao fim de algum tempo, teve cinco dias de folga para evitar o burnout. "Fui para Cabul, pude ir a um jardim, os afegãos adoram jardins. Era espectacular, deu para almoçar e tudo.". Quando as situações estabilizam "é possível tirar um dia por semana", acrescenta João Martins. "No caso de África, em que o risco de rapto não é grande, podemos sair, andar um bocado, ir ao mercado, beber um chá. No Iémen são seis meses de casa-escritório, sendo que o escritório está a cinco metros de casa." A pergunta impõe-se: a vida nos complexos dos MSF é claustrofóbica? "Não, até conseguia andar dez minutos até ao hospital", ri Maria Afonso. João Martins passa dez meses fora se Porrugal por ano e tenta ter algum material de ginásio por perto, "para manter a sanidade mental"..Na linha da frente antes da queda de Kadhafi.Insónias, ataques de ansiedade, irritabilidade, impaciência, mania da paranoia, falta ou excesso de apetite. Estes são alguns dos sinais de alarme para detetar stress e o famoso burnout entre quem está em missão. Quando isso acontece, "há pessoas que têm de ser retiradas, a outras basta um dia de folga, outras podem recorrer a consultas e apoio online, com outras funciona o apoio em grupo", explica Maria Palha, 36 anos, psicóloga que leva já mais de dez missões na última década com os Médicos sem Fronteiras, que partilha com as suas consultas em Lisboa. Mas o seu trabalho não passa só por acompanhar quem trabalha no terreno. É muito mais do que isso.. "Já estive em Moçambique, Zimbabwe, Brasil, Líbia, Síria, Camboja, em diferentes contextos, para desenhar projetos de saúde mental para serem enquadrados nos planos médicos." Um exemplo: na Síria, em 2012, apanhou já a questão da utilização de armas químicas e o programa de saúde mental mostrava que existem consequências da exposição a esses produtos, que as vítimas podem precisar de apoio psicológico..Atualmente, os Médicos sem Fronteiras têm 462 projetos em 72 países nos cinco continentes. O principal objetivo da organização é atuar em emergências, quando há muitas pessoas sem assistência, em regiões de conflito armado, depois de desastres naturais e durante epidemias. "Eu já estive em contexto de cheias no Brasil, a seguir a um terramoto na Turquia. Em contexto de guerra estive na linha da frente", contextualiza Maria Palha. "Na Líbia, fui a Sirte duas semanas antes de Kadhafi ser apanhado, muito perto da linha da frente. Na Síria tive de ser retirada quando se colocou a questão das armas químicas.".Até final do mês, uma exposição na Galeria da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, em Lisboa, revisita alguns destes momentos mais marcantes da história dos Médicos sem Fronteiras. Da Ação à Palavra apresenta o percurso feito desde as origens dos MSF em 1971, no contexto da Guerra do Biafra, passando pela Etiópia, Somália, Ruanda, Bósnia, Chechénia até à atual crise na Síria, Iémen e com os refugiados no Mediterrâneo. A exposição revela também o trabalho da organização em outras catástrofes como otsunami na Ásia ou o terramoto no Haiti..As missões longas, de desenvolvimento, podem durar um ano, em contextos mais calmos; as de emergência vão de algumas semanas até dois ou três meses. Quem estiver interessado em trabalhar com os Médicos sem Fronteiras deve visitar o site da organização - https://www.msf.org/ - e verificar os critérios de seleção. Se preencher todos os critérios, basta seguir as instruções do site para enviar a candidatura.