Uma leitura cruzada, à cata de outras realidades e acontecimentos, deixa-me diante de uma data que, confesso, chega e sobra para impressionar: na próxima semana - mais exatamente a 28 de novembro - cumpre-se meio século sobre a morte de Enid Blyton (1897-1968). Acontece que a controversa escritora inglesa, um daqueles exemplos que justifica a ideia que cabe na expressão "vícios privados, públicas virtudes", foi a minha primeira grande referência na aproximação aos livros. Com a ajuda das circunstâncias, é certo - uma doença, chata e "comprida", obrigou-me a um "repouso" de vários meses, longe da escola, dos recreios e dos amigos nos idos pré-históricos de 1966. Esse "retiro" foi mitigado em duas frentes: a chegada de um televisor para servir o agregado familiar - com direito a escalas militantes e fervorosas no Mundial de Futebol jogado em Inglaterra, mas sobretudo entregue a Eusébio e aos Magriços, e os livros dos Cinco (no original The Famous Five), nada menos do que 21, todos lidos nesse "período de convalescença", de um forma febril - o que, em concreto, nada a tinha que ver com a maleita..Por alguma razão, que alguém dedicado a desvendar os mistérios da psique, sei até hoje - de cor e por ordem - todos os títulos portugueses da série, de Os Cinco na Ilha do Tesouro até Os Cinco e a Torre do Sábio, escritos entre 1942 e 1963, sem que os três irmãos, Júlio, David e Ana, mais a prima, Zé, e o cão, Tim, dessem algum sinal de "envelhecimento". Para esse magnetismo das histórias, descubro agora dois motivos óbvios: primeiro, a aposta da autora numa vida saudável dos protagonistas, cheia de passeios ao ar livre, de acampamentos e viagens. Ou seja, o "fruto proibido" para quem estava confinado a um quarto e a uma sala, só vendo o céu pela janela. O segundo tinha que ver, sem surpresa, com os gloriosos piqueniques e refeições que me deixavam ansioso por um mais rápido restabelecimento - as geleias e compotas, os scones, os sumos e o leite, as sanduíches, por bizarra que parecesse, à época, a utilização de rodelas de tomate e de pepino, sabores a que só muito mais tarde recorri nos meus preparados. Também se explica a gula, por parte de alguém que alternava a dieta entre caldos de farinha e peixe cozido com molho branco, a que ganhei uma raiva pouco surda, que ainda perdura..Claro que também contava, e muito, a componente das aventuras, em que os adolescentes demonstravam coragem (mesmo que confessadamente temperada pelo medo) e princípios de justiça, capacidade de improviso e, não menos importante, autonomia e vontade própria nas decisões e comportamentos. Passaram anos, se não décadas, antes que uma abordagem "revisionista" me permitisse tomar consciência de alguns elementos menos recomendáveis na escrita de Enid Blyton: de um lado, a tendência para repetir argumentos - algo que se explica pela quantidade de obras produzidas, mesmo com recurso a equipas de ghost writers que lhe permitiam cumprir prazos de pura multiplicação - e as claras limitações no uso do vocabulário. Ou seja, o resvalar para uma fórmula resolvente. Do outro, com distinto grau de gravidade, o recurso a histórias de que não estão ausentes contributos de racismo, de xenofobia, de machismo. Tudo isso está estudado e documentado. Enid Blyton nunca se afastou dos seus parâmetros de mulher da classe média alta inglesa e nunca se deu ao trabalho de renegar os seus preconceitos e os seus maneirismos, descurando - por exemplo - uma visão mais clara do mundo do trabalho, entre outras lacunas..Quem quiser aprofundar este e outros olhares, dispõe de uma muito boa abordagem, mais biográfica do que analítica, dispõe de um livro, pensado e escrito em português: O Mundo de Enid Blyton (ed. Texto, 2013), da autoria de Alice Vieira, por sinal também ela muito dedicada aos leitores mais novos. Reconhecendo todos os "lapsos" de Mrs. Blyton, não é neles que penso quando constato esta efeméride sobre a sua morte, dois anos depois de eu a "descobrir". O sentimento dominante é mesmo o de gratidão: além da companhia, terá sido ela a fazer despertar em mim a paixão pelos livros que se manteve e se intensificou com a passagem do tempo. Com ou sem aventuras e piqueniques. O que me leva a uma conclusão: não é só Deus que escreve direito por linhas tortas - os próprios livros também podem seguir esse percurso enviesado. Sem efeitos colaterais, de preferência.
Uma leitura cruzada, à cata de outras realidades e acontecimentos, deixa-me diante de uma data que, confesso, chega e sobra para impressionar: na próxima semana - mais exatamente a 28 de novembro - cumpre-se meio século sobre a morte de Enid Blyton (1897-1968). Acontece que a controversa escritora inglesa, um daqueles exemplos que justifica a ideia que cabe na expressão "vícios privados, públicas virtudes", foi a minha primeira grande referência na aproximação aos livros. Com a ajuda das circunstâncias, é certo - uma doença, chata e "comprida", obrigou-me a um "repouso" de vários meses, longe da escola, dos recreios e dos amigos nos idos pré-históricos de 1966. Esse "retiro" foi mitigado em duas frentes: a chegada de um televisor para servir o agregado familiar - com direito a escalas militantes e fervorosas no Mundial de Futebol jogado em Inglaterra, mas sobretudo entregue a Eusébio e aos Magriços, e os livros dos Cinco (no original The Famous Five), nada menos do que 21, todos lidos nesse "período de convalescença", de um forma febril - o que, em concreto, nada a tinha que ver com a maleita..Por alguma razão, que alguém dedicado a desvendar os mistérios da psique, sei até hoje - de cor e por ordem - todos os títulos portugueses da série, de Os Cinco na Ilha do Tesouro até Os Cinco e a Torre do Sábio, escritos entre 1942 e 1963, sem que os três irmãos, Júlio, David e Ana, mais a prima, Zé, e o cão, Tim, dessem algum sinal de "envelhecimento". Para esse magnetismo das histórias, descubro agora dois motivos óbvios: primeiro, a aposta da autora numa vida saudável dos protagonistas, cheia de passeios ao ar livre, de acampamentos e viagens. Ou seja, o "fruto proibido" para quem estava confinado a um quarto e a uma sala, só vendo o céu pela janela. O segundo tinha que ver, sem surpresa, com os gloriosos piqueniques e refeições que me deixavam ansioso por um mais rápido restabelecimento - as geleias e compotas, os scones, os sumos e o leite, as sanduíches, por bizarra que parecesse, à época, a utilização de rodelas de tomate e de pepino, sabores a que só muito mais tarde recorri nos meus preparados. Também se explica a gula, por parte de alguém que alternava a dieta entre caldos de farinha e peixe cozido com molho branco, a que ganhei uma raiva pouco surda, que ainda perdura..Claro que também contava, e muito, a componente das aventuras, em que os adolescentes demonstravam coragem (mesmo que confessadamente temperada pelo medo) e princípios de justiça, capacidade de improviso e, não menos importante, autonomia e vontade própria nas decisões e comportamentos. Passaram anos, se não décadas, antes que uma abordagem "revisionista" me permitisse tomar consciência de alguns elementos menos recomendáveis na escrita de Enid Blyton: de um lado, a tendência para repetir argumentos - algo que se explica pela quantidade de obras produzidas, mesmo com recurso a equipas de ghost writers que lhe permitiam cumprir prazos de pura multiplicação - e as claras limitações no uso do vocabulário. Ou seja, o resvalar para uma fórmula resolvente. Do outro, com distinto grau de gravidade, o recurso a histórias de que não estão ausentes contributos de racismo, de xenofobia, de machismo. Tudo isso está estudado e documentado. Enid Blyton nunca se afastou dos seus parâmetros de mulher da classe média alta inglesa e nunca se deu ao trabalho de renegar os seus preconceitos e os seus maneirismos, descurando - por exemplo - uma visão mais clara do mundo do trabalho, entre outras lacunas..Quem quiser aprofundar este e outros olhares, dispõe de uma muito boa abordagem, mais biográfica do que analítica, dispõe de um livro, pensado e escrito em português: O Mundo de Enid Blyton (ed. Texto, 2013), da autoria de Alice Vieira, por sinal também ela muito dedicada aos leitores mais novos. Reconhecendo todos os "lapsos" de Mrs. Blyton, não é neles que penso quando constato esta efeméride sobre a sua morte, dois anos depois de eu a "descobrir". O sentimento dominante é mesmo o de gratidão: além da companhia, terá sido ela a fazer despertar em mim a paixão pelos livros que se manteve e se intensificou com a passagem do tempo. Com ou sem aventuras e piqueniques. O que me leva a uma conclusão: não é só Deus que escreve direito por linhas tortas - os próprios livros também podem seguir esse percurso enviesado. Sem efeitos colaterais, de preferência.