Naturalmente de fora
A naturalização de Liedson e a sua utilização por Carlos Queiroz na Selecção Nacional reacendeu as discussões em torno de um tema que, um dia destes, pode ficar esvaziado dos contornos polémicos, tantos e tão disseminados são os exemplos por esse mundo fora. O Brasil lidera neste aspecto, como em todos os outros no futebol, mas sabia que a selecção alemã conta com pelo menos quatro naturalizados e apenas um, o mais recente, Cacau, é brasileiro?
A geopolítica, a economia e a sociologia explicam boa parte das presenças de jogadores nascidos noutros países que não aqueles cuja bandeira ostentam nas camisolas das selecções onde jogam – e o movimento, longe de ser uma novidade dos tempos modernos, da globalização e do low cost, tem uma história que se conta com colonizações, muros e até perseguições políticas. O pai do internacional alemão Klose, por exemplo, escapou com a família da Polónia comunista e só depois de um período de exílio em França se mudou para a Alemanha (beneficiando de filiação na ex-RFA), onde o filho chegaria tarde ao futebol (apesar do exemplo paterno) e à selecção.
As naturalizações não obedecem a um padrão: há quem jogue anos e anos num país e acabe por se naturalizar para jogar pela selecção – Cacau joga desde os 19 na Alemanha, e aos 28 anos é o último naturalizado a integrar a Mannschaft, onde antes dele jogaram os brasileiros Paulo Rink e Kevin Kuranyi; há quem se naturalize e até mude de nome porque é rei em terra de pouco jeito para o futebol – como o «vietnamita» de origem brasileira Phan van Santos, nascido Fábio e chamado à selecção do Vietname pelo técnico português emigrado Henrique Calisto, aos 30 anos.
O fenómeno nem sequer é de hoje, mas com a independência das ex-colónias tornou-se mais evidente: na selecção de França que participou no primeiro Mundial de Futebol, em 1934, jogava o argelino Alcazar; em 1938 o seu compatriota Bouali; e em 1954 jogou o marroquino Mahjoub. Isto muito antes de Le Pen se ter insurgido contra o título mundial ganho pelos Bleus em 1998, com uma França também conhecida como a equipa United Colours of Beneton – cometendo o terrível erro de não perceber que todos os rapazes de nomes estranhos e cores sortidas que andavam com o galo ao peito eram tão franceses como ele, e que era a França que já tinha mudado. Platini, branquela, velha glória do futebol francês e mundial e hoje presidente da UEFA, não era ele filho de um italiano emigrado?
Platini não se mete muito no assunto, mas o seu homólogo da FIFA, o suíço Joseph Blatter, disse recentemente que estava preocupado com a predominância do Brasil também nesta matéria. Dos 180 milhões de cidadãos compatriotas de Pelé e Garrincha, pelos menos um terço joga à bola e no Boletim de Transferências da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) – onde o registo de inscrições é um documento PDF com 3685 páginas, a 47 nomes por página – o número dos que saíram em 2008 chega aos 1176.
Blatter quer impor regras ao movimento inexorável das naturalizações, proibindo a contratação de jogadores menores de idade e a obrigatoriedade de o atleta viver no país durante pelo menos cinco anos antes de poder defender a selecção da pátria de acolhimento. «Se não for assim, no Mundial de 2018 metade dos jogadores virão apenas de um país, o Brasil», antevê.
No Europeu do ano passado, 39 jogadores não tinham nascido no país das selecções que representavam, ou seja, nove por cento em 16 selecções, que representam a nata do futebol europeu, logo o mais rico e poderoso. Marcos Senna, que o «escrete» nunca julgou apto, foi campeão. Pela Espanha.
De que cor são os golos?
Se a Inglaterra ficou de fora do Europeu de 2008, a culpa é dos seus clubes, que contratam anualmente legiões de estrangeiros e assim esvaziam as selecções de campos de recrutamento de excelência? Parece uma incongruência mas, apesar de em Inglaterra só poderem jogar estrangeiros que tenham uma quota mínima de jogos pelas selecções dos seus países (o que garante uma qualidade mínima e anula a possibilidade de naturalizações), é o que defendem príncipes do futebol europeu, como o alemão Franz Beckenbauer, aliado das pretensões da FIFA em querer limitar o número de não nascidos no país nas equipas dos clubes.
Mesmo que a Europa política esteja contra, por causa do conceito de cidadão nacional do espaço da União Europeia, a quem tem de ser garantida a livre circulação e o direito ao trabalho – o futebol propõe uma moratória que, até 2013, reduza gradualmente para a fórmula 6+5 a receita de misturas de nacionais e estrangeiros nos clubes.
No futebol o tema continua controverso e a naturalização de Liedson, se bem que menos polémica do que as dos seus antecessores, Deco e Pepe, não deixa de suscitar prós e contras.
Mas não só em Portugal o fenómeno colhe paixões. Na Itália, Amauri, da Juventus, esteve a um passo de jogar pela squadra azzurra num particular contra o Brasil e os italianos esqueceram-se logo de que, em 1934, o também paulista Filó foi campeão com a maglia azul vestida. No futsal, por exemplo, todos os 14 participantes no último Campeonato do Mundo, no ano passado, eram brasileiros naturalizados, a Itália ficou em terceiro lugar, o Brasil ganhou, de novo, e a FIFA estrebuchou, de novo.
No basquetebol, o movimento de naturalizações, sobretudo de atletas vindos do Leste, começou com motivações políticas e financeiras em todo o mundo. Portugal tem vários exemplos de escolhas nacionais com base no talento e aptidão e não no lugar de nascimento, e mesmo aqui a regra é difícil de estabelecer. No andebol, há quase vinte anos, Vicktor Tchikoulaev e Vladmir Bolotskih, dois russos, ajudaram a selecção nacional a subir de nível. Recentemente, no basquetebol, o norte-americano Matt-Nover passou a ser luso-americano e o judo português nacionalizou a cubana Yamina Ramirez.
No básquete, no futebol de salão, no atletismo ou no andebol, o mundo está cheio de naturalizados que cantam os hinos, ou não cantam, e fazem golos e marcam pontos tão válidos e arrebatadores dos orgulhos nacionais como quaisquer outros.
Brasileiros no mundo*
Deco e Pepe – Portugal
André Neles – Guiné Equatorial
Araújo – Qatar
Cacau – Alemanha
Eduardo Silva – Croácia
Kevin Kuranyi – Alemanha
Marcos Senna – Espanha
Marco Aurélio (Mehmet Aurélio) – Turquia
Roger Guerreiro – Polónia
Santos – Tunísia
Túlio Tanaka – Japão
Zinha – México
*Actualmente em selecções
SELECÇÕES ABERTAS
Alemanha
Além de Cacau, os alemães contam com os polacos naturalizadps Klose, Trochowski, Podolski, com o nascido sérvio Marko Marin, mas também com alemães filhos de emigrantes modernos: Mário Gomez, filho de espanhol; Sudar Tasci, de pai turco; ou Sami Khedira, cujo pai é tunisino.
França
Um longo passado de miscigenação é indissociável da história do futebol francês, que este ano conta com os naturalizados Mandanda, do Congo, e Evra, do Senegal. Os sobrenomes nada gauleses que predominam na lista pertencem, no entanto, a franceses tão «legítimos» quanto quaisquer outros.
Itália
Camoranesi é argentino, adepto do River e tudo, fez-se profissional no futebol mexicano mas tornou-se campeão do mundo pela Itália. Antes dele, títulos da squadra azzurra foram conseguidos com craques como os brasieliros Filó ou Mazzola ou os uruguaios Schiaffino e Ghiggia.
Espanha
Muito antes de Marcos Senna, actual campeão pela Espanha, interpretar a «fúria», outro brasileiro brilhou na selecção espanhola: Donato, que jogou anos a fio pelo Deportivo da Corunha e chegou às 12 internacionalizações, incluindo no Europeu de 1996.