"Natália, Rainha e Mãe"

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A extremada devoção a um artista vivo, ou de preferência morto, quando não prefigura uma condição edipiana, denuncia muitas vezes a semiconsciência da mediocridade. A história abunda em exemplos que tais, e o nosso quotidiano ilustra a cada passo a situação. Falar de Natália Correia implicará portanto enfrentar o olhar de soslaio da corte que a tinha por imperatriz, a qual se compunha de uma maioria de irrelevantes mentais, mas que também integrava muito boa gente, se pensarmos em A.H. de Oliveira Marques, em Fernando Dacosta, ou em Helena Roseta, e nuns quantos mais, sobretudo não habitués, mas puros adventícios.

O célebre Botequim na Graça onde Natália pontificava visitava-se por isso como uma espécie de sucursal do Museu de Madame Tussaud, povoado por silentes manequins em lausperene ao seu ídolo, e não como uma locanda de convívio espontâneo, aberta aos acasos de toda a cavaqueira. Havia quem aí penetrasse a medo, e de olhar esgazeado, a fim de testemunhar um fenómeno da vida cultural, lusitana e lisboeta, detectando-se amiúde por entre os que se afoitavam o recém-deputado, descido da província, e que no Botequim se propunha iniciar o maravilhado tirocínio do seu cosmopolitismo. Seguiam à distância a actuação da que se erigia em cabeça-de-cartaz, mais ou menos hierática, mas sempre belíssima, como que no alto da escadaria da apoteose de uma revista à portuguesa. Por trás do balcão um idoso franzino, em mangas de camisa e suspensórios, e que se sabia ser o penúltimo marido da dona da casa, vigiava o andamento do negócio como o proprietário de um salão do far-west. E em seu imenso talento, emoldurado pelo esplendor fatalmente em decréscimo dos encantos físicos com que os deuses a haviam brindado, a que fora a suprema beldade da capital entronizava-se de facto como uma mátria assombrosa e inquietante.

Naquela alternativa ao pátio do Palácio da Ribeira, nocturna e não sobrevoada pelas gaivotas do Tejo, a poetisa representava para mim a mais lídima sucessora da Infanta Dona Maria, ousando porém substituir-lhe o apreço a ninfas e pastores inócuos pelo frontal elogio de As Maçãs de Orestes. E todos nos achávamos seguros de que da sua boca, e da de ninguém mais, se soltariam esses epigramas, temperados pelo whisky de malte, que valeria a pena escutar. Hetaira ou cariátide, e tão respeitadora da ciência dos velhos como verberadora da tirania das crianças, Natália Correia anunciava uma época em que a puerocracia haveria de descerrar as portas da violência, e em que a gerontofobia acabaria por incendiar os compêndios da tribo.

Vi entretanto o rebelde António Lobo Antunes beijar-lhe com sincera devoção a mão, e presenciei ocasiões em que a autora de A Pécora rechaçaria com duas palavras certeiras o fala-barato de uma universidade qualquer, o mancebo atrevido e auto-suficiente, e a senhoreca invejosa da sua áulica formosura. Certa madrugada Natália coroar-me-ia com os louros da "humanidade", prémio que conservo entre os que mais me tocam o coração. Para ela "humanidade" não significava armistício perpétuo e podre, nem muito menos obediência a um catecismo de virtudes inconsequentes.

Despedir-me-ia de Natália Correia numa câmara-ardente, tão juncada de flores como a quintessência da ilha atlântica donde ela provinha. Desejei então que avançasse por ali adentro o Hermafrodita, do Museu do Vaticano, arrastando sobre o mármore do seu corpo um manto de cinzas vulcânicas. E em minhas horas de insónia escancara-se-me ainda hoje o Botequim na Graça, sombrio e secreto, e sobe-me aos ouvidos o tinido das pérolas do colar da pitonisa, desfocada na permanência de uma nuvem de fumo.

Assim se demonstra como alcança o retratista, e apesar de não detentor de assídua coexistência com o seu modelo, esboçar o retrato aceitável, e sem salamaleques, da vera e eterna poesia.

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