Natália Correia: a poeta que se jogou aos dados

Nome maior da poesia portuguesa do século XX, Natália Correia, que hoje completaria 100 anos, foi também uma combatente pelas liberdades públicas e privadas.
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Na madrugada de 25 de Abril de 1974, Natália Correia voltara do seu bar Botequim, no bairro lisboeta da Graça, e, sentindo-se sem sono, pôs-se a ler os versos de Abenamar, poeta do século XI nascido em Silves. Mas não chegou a adormecer. Em breve, receberia um telefonema a anunciar-lhe a existência de movimentos de tropas em direção a Lisboa, com a Baixa da cidade, onde estavam os ministérios, já ocupada por tanques. Como escreveria no diário que iniciou nesse preciso momento, a direção do movimento era ainda tão indistinta como os vultos iluminados pela primeira luz da manhã: o dia iria chegar "cheio de graça libertadora" ou ferido "pelas tremuras da caquexia ultradireitista?" Quando, por volta das 7 da manhã, uma rádio transmite o seu poema Queixa das Almas Jovens Censuradas, interpretado por José Mário Branco, Natália não teve dúvidas: a ditadura, que ela combatera com palavras e atos, aproximava-se do seu fim.

Natália Correia, nascida em Fajã de Baixo, São Miguel, faria hoje 100 anos, foi desde muito nova, uma combatente pela liberdade, mas tinha desta uma conceção bastante mais ampla e abrangente do que a dos militantes políticos. Como mulher, que com a mãe e a irmã tinha trocado a ilha por Lisboa, em busca de um horizonte menos estreito, a escritora estava bem consciente de que a opressão salazarista cercava tanto a intimidade dos portugueses como as suas opções ideológicas. Em diversas ocasiões tomou parte ativa nos movimentos de Oposição antifascista, tendo participado no MUD (Movimento de Unidade Democrática, 1945), esteve no apoio às candidaturas para a Presidência da República do general Norton de Matos (1949) e de Humberto Delgado (1958) e na CEUD (Comissão Eleitoral de Unidade Democrática, 1969).

Entre as suas causas mais mediáticas esteve, ainda em ditadura, o processo que envolveu a Antologia de Poesia Erótica e Satírica, por si organizada, a convite do editor da Afrodite, Fernando Ribeiro de Mello. Nas semanas que antecederam o Natal de 1965, a volumosa obra apareceu nas livrarias, mas rapidamente foi apreendida pela PIDE, que acusou a organizadora e o editor de indecência e atentado contra a moral pública. Em causa estava a escolha de textos de trovadores medievais feita por Natália, mas também poemas inéditos de autores contemporâneos como Mário Cesariny, Luiz Pacheco, David Mourão-Ferreira, António Botto, Herberto Helder, Eugénio de Andrade, Ernesto de Melo e Castro e Maria Teresa Horta.

Quando chegou às livrarias, a antologia anunciava ao que vinha, numa cinta promocional, em que se prometia "a poesia maldita dos nossos poetas", "as cantigas medievais em linguagem atualizada" e a "revelação do erotismo em Fernando Pessoa". Não era preciso mais para despertar a ira do censor: em menos de três dias, foram apreendidos os exemplares da 1.ª edição e abertos processos contra Natália, Ribeiro de Mello e alguns dos poetas representados, num julgamento que se arrastou durante mais de seis anos e que terminou, de forma simbólica, com alguns exemplares a serem queimados. Natália e Ribeiro de Mello foram condenados a 90 dias de prisão, com as penas convertidas em multas pecuniárias. Luiz Pacheco, Mário Cesariny, Ary dos Santos e Ernesto de Melo Castro também foram condenados, mas com penas mais leves.

Enquanto decorria o processo, a autora escreveu um dos seus poemas mais emblemáticos, A Defesa do Poeta, com a intenção de o ler numa das sessões do julgamento. mas o seu advogado, Manuel João da Palma Carlos, aconselhou-a a que não o fizesse. Com efeito, o tom de desafio estendia-se do primeiro ao último verso: "Sou um poeta/um multipétalo uivo um defeito/e ando/com uma camisa de vento/ao contrário do esqueleto."

Como escreve Filipa Martins na biografia que dedicou a Natália Correia (O Dever de Deslumbrar), o desfecho deste caso teve laivos inquisitoriais: "O título teve como destino a inutilização legal através do fogo (...). O agente destacado para cumprir a ordem do Tribunal foi Agostinho Geraldo Tienza, motorista de Rosa Casaco e assassino da secretária de Humberto Delgado, Arajaryr Campos, a 13 de fevereiro de 1965, perto de Badajoz. Teve nesse processo censório mais uma oportunidade para dar provas das suas incansáveis capacidades de servir a ditadura."

O imperativo de lutar contra o que considerava ser as ambições totalitárias do PCP (sobretudo durante o gonçalvismo) e o fascínio que tinha pela personalidade de Francisco Sá Carneiro levá-la-iam a inscrever-se no então designado Partido Popular Democrata (PPD). Foi na qualidade de deputada deste partido que se tornou uma das protagonistas do primeiro debate parlamentar dedicado à despenalização da interrupção involuntária da gravidez.

Aconteceu em 1982: estando em discussão um projeto de lei do Partido Comunista sobre este tema, o deputado do CDS João Morgado veio recordar ao hemiciclo a posição do seu partido, segundo a qual o ato sexual se deveria destinar única e exclusivamente à reprodução humana.

A reação de Natália não se fez esperar e veio em forma de verso jocoso, muito ao gosto das cantigas de escárnio e maldizer medievais de que tanto gostava: "Já que o coito - diz Morgado - / tem como fim cristalino, / preciso e imaculado / fazer menina ou menino; / e cada vez que o varão / sexual petisco manduca, / temos na procriação / prova de que houve truca-truca. / Sendo pai só de um rebento, / lógica é a conclusão / de que o viril instrumento /s ó usou - parca ração! - / uma vez. E se a função / faz o órgão - diz o ditado - / consumada essa excepção, /ficou capado o Morgado."

Como seria de esperar, esta sessão entraria para o best of da História do Parlamento português, mas a intervenção de Natália Correia sobre um tema que ela considerava da máxima importância, sobretudo para as mulheres, não se limitou a meia-dúzia de versos jocosos. Quando lemos as atas da sessão parlamentar de 12 de novembro de 1982, deparamo-nos com a profundidade sociológica e até filosófica da sua reflexão: "(...) Penso nesses muitos milhares de mulheres que, dolorosamente impelidas por circunstâncias inibitórias de uma maternidade saudável, arriscam a sua vida em tenebrosos desvãos de curiosas. Sangue e tragédia com que a efetiva não-coatividade e não-funcionalidade real da penalização legal do aborto tece a rede da sua prática clandestina!"

E acrescenta ainda: "O conceito de vida humana é, pelo seu conteúdo de relação entre o eu e o outro, um conceito histórico movido pelo avanço social, científico e cultural do homem que gera novas questões éticas. Eis o que esquecem aqueles que, com uma ótica estática da ética, fundamentam em valores morais e culturais a ilicitude do aborto voluntário, mesmo quando é o drama que está na sua origem."

Chumbado em sede parlamentar o projeto de lei do PCP, o aborto só seria despenalizado em 2007, 14 anos depois da morte de Natália Correia.

Cultora do amor, da liberdade no amor, e do erotismo, Natália encantava-se com histórias de amantes que superavam as dificuldades e obstáculos, como, aliás, admitia no seu poema, Credo: "Creio no incrível, nas coisas assombrosas, / Na ocupação do mundo pelas rosas, / Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen." Ela própria casar-se-ia quatro vezes e tinha, no carnet-de-bal da sua existência, uma vasta galeria de paixões, fascínios e pretendentes.

Mas nesses jogos de amor, havia ainda espaço e tempo para propiciar encontros que a escritora considerava promissores. Assim fez com Snu Abecassis, sua editora nas Publicações Dom Quixote, e Francisco Sá Carneiro, líder do PPD, assíduo frequentador das tertúlias do Botequim. O facto de ambos serem casados com outras pessoas (Snu com o economista Vasco Abecassis e Sá Carneiro com Isabel, filha da alta burguesia católica do Porto) não era obstáculo para Natália, para quem o verdadeiro amor era mais forte do que qualquer convenção social.

Tudo terá começado quando o político perguntou a Natália "como era a sua editora comum" (a convite de Snu, Sá Carneiro, como Mário Soares e Álvaro Cunhal, publicou então alguns textos na Dom Quixote). A resposta não se fez esperar: "É uma princesa que jaz adormecida num esquife de gelo à espera do príncipe que a desperte com um beijo de fogo. O príncipe é você. Telefone-lhe e convide-a."

A seguir, ligou para Snu: "Menina, o príncipe encantado por que esperavas vai aparecer-te." Snu aceitou o pedido de Sá Carneiro para um almoço, que aconteceu no restaurante Varanda do Chanceler, em Alfama, e parece ter sido amor à primeira vista. Quando o caso entre os dois se tornou muito mais do que isso, o escândalo rebentou, favorecido, por um lado, pela Igreja Católica e, por outro, pelos adversários políticos de Sá Carneiro.

Natália Correia manter-se-ia firmemente ao lado destes seus "afilhados" enquanto outro nome grande da literatura, Agustina Bessa-Luís, até aí ferverosa apoiante de Sá Carneiro (a ponto de escrever um romance inspirado na sua figura, Os Meninos de Ouro), toma o partido de Isabel, que jamais concederia o divórcio a Francisco.

A última "causa" de Natália Correia seria, já em 1992, a formação da Frente Nacional pela Defesa da Cultura, ao lado de, entre outros, Luiz Francisco Rebello, José Saramago, António Borges Coelho, Urbano Tavares Rodrigues ou David Mourão Ferreira. Em causa estavam as medidas do Governo de Cavaco Silva, personificadas em Pedro Santana Lopes e Sousa Lara, respetivamente secretário e subsecretário de Estado da Cultura, sobretudo para o setor do livro.

O movimento foi apresentado na sede da Associação Portuguesa de Escritores, a 20 de fevereiro de 1992, na presença da primeira-dama, Maria Barroso, e da sua antecessora, Manuela Eanes, ambas amigas pessoais de Natália.

Em causa estava, entre outros aspetos, a aplicação de IVA aos livros colocados no mercado, que coincidiu com o veto de Sousa Lara à candidatura de O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de Saramago, a um prémio literário europeu. Apesar do impacto do acontecimento, Cavaco Silva nunca respondeu ao pedido de audiência feito por Natália, enquanto Santana Lopes tentava acalmá-la com ramos de flores enviados para o Botequim.

"Durante a ditadura, o livro lá se ia vendendo debaixo do balcão. Agora o que há é uma censura económica", declarou-me ela, a propósito, na 5.ª feira Santa de 1992, enquanto eu, jovem repórter do JL, tentava "enfiar-me" pelo chão abaixo da sua casa na Rua Rodrigues Sampaio, talvez mais intimidada pelo mito do que pela mulher.

Natália morreu menos de um ano depois, a 16 de março de 1993, aos 69 anos. Como nos prometeu no poema A Defesa do Poeta, continua a assombrar-nos com "uma camisa de vento ao contrário do esqueleto."

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