Natal: o essencial é invisível aos olhos

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Escrever um artigo sobre o Natal, e sobre este Natal em particular, não é fácil. Vivemos tempos difíceis, de grande incerteza e imprevisibilidade. Muitos olham à sua volta e veem-se sozinhos ou com (ainda mais) lugares vazios à mesa. Impossibilitados de abraçar quem mais amam, sentem-se como que amputados no coração. Outros deparam-se com as perdas... tantas perdas, de tantas formas e feitios que conduzem, invariavelmente, à perda de esperança.

Neste contexto, escrever um artigo sobre a magia do Natal soa a falso. Recuso-me a escrever um artigo embrulhado em papel cor-de-rosa quando, em tantos corações, são as emoções mais escuras que predominam. O medo, a tristeza, a ansiedade, a raiva... e a solidão.

Pensar neste Natal que hoje vivemos trouxe-me à memória os natais da minha infância. Quando, há 40 anos atrás, o meu pai enchia o jipe até cima e fazia uma espécie de cama na parte de trás, onde eu e os meus irmãos nos deitávamos para dormir. Sim, a viagem de Lisboa à Amareleja naquele fantástico UMM por estradas velhas e mal cuidadas demorava mais de oito horas. Era uma verdadeira aventura, aquela viagem. E, na ânsia da espera, na expectativa da chegada, residia desde logo grande parte da magia do Natal.

Chegados à aldeia, logo corríamos a visitar os avós, os tios e os primos. Livres, com asas que só ali desabrochavam, íamos de rua em rua bater aos postigos das casas das pessoas conhecidas. E, encantados, descobríamos os doces típicos da terra, a roupa nova que a avó tinha costurado para a minha boneca ou os cãezinhos bebés que já tinham nascido. Por vezes, recebíamos umas moedas de 5 escudos que guardávamos religiosamente, de olhos postos no pequeno pai natal de chocolate que esperava por nós, direitinho, qual sentinela, na beira da chaminé.

No chão, o lume crepitava e lá fazíamos as torradas com azeite, as bolotas assadas e o feijão com feijão. O lume sempre foi o epicentro, em redor do qual todos se reuniam para partilhar as suas histórias. E ao meu avô tinha de repetir vezes sem conta que sim, já sabia a tabuada de cor...

Estas memórias são minhas, é certo, mas acredito que serão certamente partilhadas com muitas outras pessoas. Porque falo de memórias de tempos difíceis, por um lado, e muito felizes, ao mesmo tempo.

São memórias de tempos parcos, onde Natal não rimava com fartura ou abundância. Não existiam iguarias nem prendas fantásticas. Mas existiam gargalhadas e vivências que eram contadas vezes sem fim.

Hoje é Natal e estes tempos que recordo parecem tão distantes. Mas não são. Por isso, fechemos os olhos e deixemos que o essencial tome conta de nós. Os sorrisos. As palavras doces. A torrada um bocadinho queimada. A moeda que vale ouro. O cheiro daquele bolo que só aquela pessoa especial sabe fazer. E se abrirmos os olhos e nada disto estiver à nossa frente, pois fechemo-los outra vez. Temos o poder da memória, esse baú de tesouros que nos permite continuar a reviver as coisas boas vezes sem conta.

Feliz Natal, com aquilo que é realmente essencial.

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