Nas urgências hospitalares, utentes dividem-se entre o "very good services" e a falta de humanismo

O Verão ainda não chegou em pleno e já a urgência do Hospital de Faro tem picos de procura de 370 e mais casos diários. "Picos históricos", admite o diretor do serviço, José Almeida. É a única urgência polivalente que serve a população da região e os visitantes. É o serviço de porta aberta onde se trata emergência, doença crónica, emoções e casos sociais. Todos os anos o verão é acautelado, logo em dezembro, quando se garantem escalas, mas há sempre contingências. Este ano, é mais um teste. À porta, as histórias e as opiniões divergem entre portugueses e estrangeiros. Como se prepara o Centro Hospitalar Universitário do Algarve para o verão é mais uma das reportagens da série que o DN e que amanhã termina.
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Ana Paula Branco aguarda a mãe, de 86 anos, que deu entrada na urgência do Hospital de Faro, pelas 10:00, sentada no muro mesmo em frente à porta do serviço. Sabe a que horas entrou, mas não sabe a que horas regressará a casa. Tudo dependerá do que decidirem fazer à mãe. Ao DN, diz não ter tido outra solução senão recorrer à urgência. "Já não sabia o que fazer à minha mãe. Foi-lhe diagnosticado um tumor nos intestinos no dia 18 de maio e desde aí que a situação tem vindo a agravar. Não consegue obrar há vários dias vão ter de resolver a situação, mas não sei quanto tempo vou ter de aguardar ".

Ana Paula nasceu e reside na capital do Algarve. Não é a primeira vez que usa o serviço de urgência do hospital e confessa que só aceitou falar com o DN e deixar-se fotografar por considerar que "o problema da saúde na região é grave. Ninguém olha para isto à séria". "Sabemos que faltam recursos humanos, que são precisos mais médicos e enfermeiros, mas, nós, utentes, não podemos continuar a ser tratados assim", desabafa.

Perguntamos como se considera que são tratados, ao que responde: "Olhe, muitas vezes nem tem a ver com os cuidados que são prestados, mas as condições em que as pessoas são tratadas, os tempos de espera, o não falarem connosco. O estarmos aqui e às vezes não sabermos nada do que se está a passar".

Ana Paula prefere aguardar cá fora, onde sempre pode apanhar ar e fumar um cigarro, apesar de a sala de espera "não estar cheia, mas depois daquela porta é só macas", diz-nos. Isso o DN não pode observar, o pedido de fazer reportagem dentro do próprio serviço não foi aceite, devido às regras de proteção definidas pelas covid para os utentes e profissionais, disseram-nos. O relato que aqui fica é dos utentes que aguardam à porta da urgência.

Rosa Ferreira trouxe a mãe de Loulé para a urgência de Faro na noite anterior, pelas 22:00. "A minha mãe é diabética e teve uma crise. Estava com os valores a 500 e, no centro de saúde, mandaram-na vir logo para aqui. Tive que a trazer de ambulância, porque é uma pessoa que está acamada e não a consigo levantar", conta-nos. Do tratamento na urgência, Rosa e a mãe, Maria Madalena Martins, de 87 anos, ficaram despachadas quatro horas depois de terem chegado, mas à hora que falamos passavam 12 horas desde esse momento. Eram quase 14:00, Rosa e a mãe ainda não tinham saído do hospital. "Não há ambulâncias para a levar a casa", explica-nos.

Naquela sexta-feira, em que o calor já aperta, Rosa sentia-se indignada, sobretudo pelo que a mãe era obrigada a viver. "A minha mãe está numa cadeira de rodas há 12 horas. Mal comeu. Isto são condições desumanas, não se faz a ninguém". O problema de Rosa não foi ou não é o atendimento na urgência, mas a forma como funcionam os serviços a montante da urgência, que quando falham a resposta ao utente falha também. Segundo nos explicaram, o hospital tem um contrato com uma empresa para transporte de doentes e "não deve haver ambulâncias disponíveis".

Quando saímos, Rosa e a mãe continuam à espera. E ela comenta: "Ainda não sei a que horas vamos ter transporte. Se conseguisse pegar nela e levá-la já tinha ido embora".

À porta da urgência, Cecília Santos, de 64 anos, é quem nos pede para a ouvirmos. Garante ter muito para dizer dos serviços de saúde do Algarve, região que a viu nascer e crescer na zona de Loulé. Rosa avisa ser uma pessoa conhecida nos serviços por andar de urgência em urgência, mas ela própria confessa que no dia anterior tinha estado no centro de saúde Loulé e que hoje está ali.

"Tenho problemas graves de coluna e de coração", diz, em tom baixinho e pausadamente, mostrando as pernas e os pés inchados. "Já viu, e ninguém me faz nada. Isto é por causa do coração que não está a bater bem". Perguntamos se é esse o motivo que a levou ali e Cecília explica que não. "Desta vez é a coluna, sinto-me pior, não consigo estar sentada nem deitada, mas, sabe, o pior, é não ter ninguém que cuide de mim. Preciso de auxílio e de alguém que me ajude", assume sem receio. Dito assim choca, entristece e os corações batem mais forte. Cecília é afinal um dos muitos casos sociais com que uma urgência hospitalar tem de lidar.

A presidente do conselho de administração do Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA), onde está integrado o Hospital de Faro, diz ao DN que quando assumiu funções, em junho de 2020, havia 90 camas ocupadas com casos sociais, de pessoas que ali tinham chegado e não tinham para onde, mas "alguns estavam cá há mais de seis meses, mas até dezembro conseguimos resolver todos esses casos". Mas há sempre mais alguns que chegam. "Quando vê uma pessoa caída na rua o que faz? Chama o 112, que a traz para a urgência, mesmo que não tenha nada, mas se não tiver para onde ir temos de ficar com o doente até o seu problema ficar resolvido", argumenta.

A questão, explica Ana Varge Gomes, é que se temos 90 doentes destes internados, não podemos internar outros. Isto representa 10% da nossa capacidade e, por isso, é que muitas vezes há doentes que ficam em macas nas urgências, não temos onde os colocar. É um ciclo vicioso", admitindo: "O serviço de urgência é sempre o mais complexo de gerir por isto. É uma porta aberta para tudo".

Perguntamos a Cecília se já contactou a Segurança Social ou a assistente da sua área, diz que sim, mas "ninguém resolveu o meu problema". "Venho várias vezes aqui, espero muitas horas, mas alguém tem de me ajudar", continua. "Escreva isto", pede-nos à saída. Cecília, de boné de fazenda na cabeça, rosto marcado pelo sol, exibe a pulseira azul no braço (pulseira não urgente). Chegou pelas 10.00, são quase 14:00 e ainda não foi chamada. Para ela é mais um dia, mais um dia sozinha, mais uma ida à urgência, para o hospital mais um caso social ao qual a segurança social é que tinha de dar resposta.

Felismina Guerreiro também vem ter connosco quando percebe que somos do DN. Quer falar, sobretudo por considerar que o que tem vivido naquele hospital com o marido, um doente renal crónico com um problema oncológico, mieloma, "é desumano".

"Sou de Faro, conheço este hospital há muitos anos, estive aqui no domingo, das 02:00 até às 16.00. O meu marido não conseguia urinar e só me diziam que não havia nada a fazer. Estive ali horas, não é a primeira vez, e quando cá venho não há um médico que tire os olhos do computador para nos olhar de frente e falar connosco ou com o doente. Sei que isto é um serviço de urgência, que podem ter muito que fazer, mas há situações em que as pessoas têm de vir aqui. Eu não sei o que posso fazer mais ao meu marido e quero ajudá-lo".

Naquele domingo, Felismina levou o marido para casa com medicação, mas dias depois teve de regressar. Chegou pelas 07.00 daquela sexta-feira de fim de maio e o marido já tinha sido visto por um médico e ia ser internado. "Pelo menos hoje, estão a dar-lhe mais atenção e a ver do que precisa mesmo, mas também não sei se foi por ter pedido ajuda a um sobrinho que é médico em Lisboa e que ligou para aqui para falar com um colega". Para Felismina, a urgência é urgência, mas "onde está o humanismo das pessoas?", questiona.

Vânia de Olhão está há duas horas à porta da urgência. Aguarda que a chamem para fazer um teste à covid-19. Chegou ali com falta de ar e com outros sintomas associados à infeção por SARS CoV-2. "Fui à sala de triagem e mandaram-me aguardar, mas nunca mais. Agora, vim cá para fora, já não aguento", comenta, de máscara por baixo do nariz. Ao nosso gesto de que a máscara tem de estar bem colocada, Vânia responde: "Está muito calor, não aguento". Ao seu lado, o marido refila: "É sempre assim neste hospital e não me venham dizer que é só por causa de não haver médicos". Quando perguntamos porque não contactou a Linha de Saúde 24 ou o centro de saúde, Vânia encolhe os ombros. "Tinha falta de ar, não achei que fosse covid". Ali, encontram-se casos destes "todos os dias", dizem-nos.

Scott era das pessoas que se diferenciava de todos os outros à porta da urgência. A pele clara e o inglês em que comunicava ao telefone não deixavam enganar. Há muito que não parava de fazer ou de atender chamadas. Percebemos que se passava algo e pensámos que seria um dos muitos residentes na região, mas não. Scott tinha chegado no dia anterior a Faro para gozar uma semana de férias com os pais e as irmãs. "Estou de férias. Cheguei ontem às 09:00", diz tranquilamente, apesar da situação. É o pai que ali está internado e não sabem quando terá alta.

No dia em que chegaram, o pai sentiu uma forte dor no peito e estava com dificuldade em respirar. Scott conta que o levaram de imediato para um dos hospitais privados em Faro, tinham seguro de saúde, para se saber o que se passava, mas a dor no peito, que poderia ser uma suspeita de enfarte, e um teste inconclusivo à covid-19, fizeram com que o hospital privado o encaminhasse para a urgência do SNS. O pai chegou de ambulância e "foi logo atendido", diz-nos. Ficaram à espera, mas souberam depois que tinha sido um "heart attack (ataque cardíaco) e vai ficar internado".

As férias acabaram ali, o resto da família junta-se a Scott, ainda não sabem quanto tempo o pai ficará ali, mas a experiência de Scott, vindo do Reino Unido, não é a mesma relatada pelos portugueses. Scott não hesita em dizer: "O meu pai foi logo atendido e está a ser bem tratado", repetindo: "Very good services". Quem ali trabalha diz-nos: "Uma situação urgente é logo tratada."

José Almeida, diretor do serviço de urgência de Faro, diz ao DN que aquela sexta-feira está a ser um dia normal na urgência, como tantos outros."É um dia que não está a ser muito complicado, mas que já é tipicamente de comportamento de verão. Muitos traumatismos e muitos acidentes, que é o que acontece no pico das férias e que agora está a distorcer a procura normal no mês de maio". Mas não só. José de Almeida, que há quatro anos deixou o Centro Hospitalar de Coimbra para se fixar no Algarve, depois de um convite direto para gerir as urgências, especifica: "Temos os traumatismos, mas também a gestão de casos com doença crónica".

No mês de maio, a média diária de idas à urgência tem variado entre os 270 e os 300, com picos de 370 e mais casos nalguns dias, o que José Almeida diz serem "picos históricos". "Uma tendência que começou a ser registada no primeiro trimestre - talvez, pela recuperação mais rápida do turismo - e que se está a manter no segundo", embora, sublinhe, "a mim não me importa tanto a média diária de casos, mas a capacidade de resiliência da resposta aos picos".

E o balanço que faz destes quatro anos "é positivo, tanto que saímos da comunicação social. Isto é um facto. Não têm havido notícias sobre a urgência", argumenta. Talvez porque "baixámos as reclamações. Hoje em dia, quase que não temos reclamações (referindo-se às reclamações escritas e registadas no livro amarelo) e isso tem a ver com o facto de termos conseguido baixar os tempos de espera". Acrescentando: "Desde 2019 que cumprimos os tempos alvo em mais de 90% dos episódios de urgência."

Durante a pandemia, "tivemos uma quebra de episódios na urgência, mas esta não foi exatamente igual à da quebra em outros serviços de urgência semelhantes ao nosso. Foi ligeiramente menor, a nossa foi da ordem dos 15% a 16%, mas houve quem tivesse tido quebras de 40% e de 50%". O facto de a quebra em Faro ter sido menor justifica com "o sermos a única urgência diferenciada para toda a região".

José Almeida reconhece que a falta de recursos humanos é um problema do serviço que dirige, mas este "é um problema estrutural e transversal a todo o SNS. Aqui, temos algumas dificuldades, mas não me parece que seja diferente de outros serviços. Temos de recorrer a prestadores de serviço em algumas áreas como ortopedia e cirurgia", explicando: "Tenho uma equipa fixa para o serviço de urgência - é um bom sistema e deveria levar ao debate sobre uma especialidade para as equipas de urgência -, com um duplo perfil dos médicos. O primeiro faz o contacto com a maior parte dos doentes. É a equipa, a que chamei de triagem médica, o segundo perfil são os médicos de todas as especialidades que depois dão apoio a esta triagem. E é assim que estamos a tentar funcionar e a tentar resolver o problema dos recursos humanos", de inverno ou de verão.

No Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA), que integra os hospitais de Faro e de Portimão, apesar dos 60 quilómetros a separá-los, o verão começa a ser preparado muito antes, devido à necessidade de assegurar as escalas para garantir que há médicos, enfermeiros e outros profissionais a trabalhar nesta época do ano.

Segundo explicou ao DN a presidente do CHUA, Ana Varge Gomes, "as escalas são reforçadas com prestadores externos", acontecendo o mesmo com as escalas dos quatro serviços de urgência básica a funcionarem em Vila Real de Santo António, Loulé, Albufeira e Lagos. Ao todo, a região tem quatro Serviços de Urgência Básica (SUB), um Serviço de Urgência Médico-cirúrgica, no Hospital de Portimão, e um Serviço de Urgência Polivalente, em Faro.

E são estes serviços que têm de ser todos reforçados para dar resposta ao aumento de população no verão. "Felizmente, que as pessoas vêm de férias e saudáveis e o aumento das idas às urgências não é proporcional ao aumento da população", refere a médica, acrescentando: "Os SUB vão estar reforçados para as pessoas poderem terem respostas na proximidade", esperando assim, que desta forma não pressionem as urgências hospitalares com casos que não têm de ir lá.

No Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA), há mais do que um só projeto ou um só plano para o verão. A unidade tem de dar resposta a toda a população residente no ano inteiro e há que gerir outros projetos de cuidados, nomeadamente na área da hospitalização domiciliária, a doentes que já não precisam de cuidados no hospital, mas que necessitam de manter tratamentos, como medicação intravenosa. Este projeto está a ser levado a cabo na área de Portimão e em quatro lares da região. Mas este mês já entrou outro em funcionamento: "CHUA Proximidade".

A presidente do CHUA diz ao DN que aos poucos têm vindo "a aumentar as nossas capacidades para podermos dar mais oferta à nossa população. E este projeto, CHUA Proximidade, tem como objetivo levar algumas das especialidades hospitalares aos centros de saúde, sobretudo aos que estão mais distantes de nós e com maiores dificuldades no acesso, por exemplo Aljezur, São Bartolomeu de Messines, Albufeira e Tavira", explica. O projeto começou no dia 1 de junho, para assinalar o Dia Mundial da Criança, com a ida de um médico pediatra a estes centros, mas depois irão outros especialistas, de Medicina Interna e cirurgia geral e, se calhar, de ginecologia-obstetrícia.

Como diz Ana Varge Gomes, "a agenda será mensal e o mais importante é a interação com os colegas que estão no centro de saúde para formação contínua e para ter também uma porta aberta de contacto para o caso de ter um doente à frente, cujo caso tem de resolver, e precise de ligar a um colega especialista para o discutir". Até ao final do ano, está ainda prevista criação de um Centro de Procriação Medicamente Assistida.

(Leia amanhã como se preparam as equipas da Saúde Pública)

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