"Narcos" prepara fim do protagonista: "A série não é sobre Pablo Escobar"

A segunda temporada estreia-se esta sexta-feira no Netflix. Atores e criadores falaram com o DN
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Pablo Escobar manda o sicário sair da carrinha e pega numa mala com um sistema de comunicações por rádio. "Só quero que saibas que te quero muito. A ti e aos nossos filhos", diz, numa voz grave e suave, à mulher e companheira de toda a vida. "Sabes que nunca, nunca te vou deixar. Amo-te, Tata." Ela responde, a medo mas com convicção, "Eu sempre te amarei, Pablo."

Dias antes, o narcotraficante mais infame da história mandara colocar um carro com 100 quilos de explosivos numa zona comercial de Bogotá, perto do palácio presidencial colombiano. Matou dezenas de pessoas, várias delas crianças. "Eu, o que quero ver, é sangue. Quero que o céu arda com pólvora", ordenara a um dos seus sicários. O mesmo homem que pôs a Colômbia a ferro e fogo nos anos oitenta estava ali sentado, numa noite de chuva torrencial, a professar o seu amor pela família. É uma contradição que o ator brasileiro Wagner Moura encarnou de forma fenomenal na segunda temporada da série original do Netflix, Narcos, que se estreia esta sexta-feira. A cena do rádio e da carrinha é mais uma das muitas em que Moura e o realizador José Padilha conseguiram mostrar o lado humano, quase frágil, do traficante impiedoso que inundou a América de cocaína.

"É aqui que começamos a ver a queda deste homem", concede Wagner Moura num encontro em Los Angeles. "Uma das coisas interessantes sobre ele é que não se contentou em ser o sétimo homem mais rico do mundo. Pablo queria ser amado, queria ser aceite", explicou, falando do fosso entre classes sociais que existe na Colômbia. "Era um homem muito carismático, um homem de família. Ele morreu por causa da família." Casou-se com a mulher "Tata", quando esta tinha 15 anos e ele 27. Tiveram dois filhos, Juan Pablo e Manuela. E ele adorou-os até à morte.

"Eu e o José [Padilha] quisemos mostrar essas zonas cinzentas entre o vilão que ele era e o ser humano. As pessoas adoravam o Pablo, e foram-lhe fiéis até ao fim", frisa o ator.

Esta temporada é, em vários aspetos, melhor que a primeira. Até o sotaque de Wagner Moura está mais perto do colombiano, embora se mantenha uma grande diversidade nos "sabores" de espanhol da série, com atores de toda a América Latina. Nestes dez episódios, o espectador é confrontado com uma família em fuga, um Pablo sanguinário e um dilema sobre quem é bom, quem é mau, e onde está essa linha que separa os homens de lei e os bandidos.

O coronel Horacio Carrillo, uma interpretação exímia do cubano-americano Maurice Compte, encarna esse dilema. Mas, ao contrário da maioria dos personagens da série, Carrillo não existiu na vida real.

O DN perguntou a José Padilha se o coronel tinha sido inspirado em Capitão Nascimento, o personagem de Wagner Moura na saga Tropa de Elite. "Sim, e não. Tínhamos uma equipa de consultores com agentes da DEA [Drug Enforcement Administration] e fomos com eles à Colômbia antes de escrever a série", conta Padilha. "Todas as vezes que falávamos com polícias colombianos, eles eram tão cordiais, contavam como capturavam bandidos e lhes perguntavam coisas. E eu conheço a polícia no Brasil e não é assim. Apanham o bandido e dão-lhe uma coça", resumiu. "Um dia, peguei num agente e pedi-lhe "digam-me a verdade. O que é que vocês fizeram?" E ele respondeu, "exatamente o que fazia o Capitão Nascimento." Tortura, porrada". Horacio Carrillo foi um personagem criado para mostrar como as coisas realmente aconteceram.

No entanto, também os agentes Steve Murphy (Boyd Holbrook) e Javier Peña (Pedro Pascal) se veem envolvidos numa espiral de comportamentos e decisões que tornam difusa essa linha de separação. "Não acreditamos em bons e maus na guerra da droga", confirmou o protudor Eric Newman. "Há maus, e há os mesmos muito maus", acrescentou. Narcos recusa mostrar os americanos como os nobres salvadores e os colombianos como vítimas ou vilões. É uma nuance que talvez só um realizador sul-americano como Padilha poderia imprimir a uma série com formato à Hollywood.

O que Padilha e Newman também conseguem nesta temporada é mostrar quão facilmente homens simples se tornam em assassinos sem caírem num jogo de clichés. O papel das mulheres é outro ponto interessante em Narcos 2. A aparentemente submissa Tata (Paulina Gaitán) revela-se primordial para o desfecho da guerra. O que acontece a Maritza (Martina Garcia) pisa um nervo de empatia e mostra as consequências de tomar a decisão errada para ajudar alguém que se julga conhecer. Judy Moncada (Cristina Umaña) assume-se como aspirante a baronesa da droga, uma exceção num negócio violento dominado por homens, e levanta o véu sobre o futuro da série.

Sendo esta a temporada da caça ao homem, é obviamente a última para Wagner Moura como Pablo Escobar. Mas Narcos transcende o barão da droga.

"Esta série não é sobre Pablo Escobar", declarou José Padilha. "Acontece que Escobar é o homem que criou a indústria massiva do tráfico de cocaína." Ele é o fundador deste negócio - mas a série é sobre cocaína. "Queremos assumir uma visão crítica da política que temos: combater os fornecedores mas não fazer nada quanto à procura."

Eric Newman anuiu. "Acreditamos que a guerra contra as drogas vai continuar enquanto a América apontar o dedo a um lugar longínquo e disser que ali é que está o problema, em vez de lidar com o facto de ser o maior mercado mundial de consumo de cocaína."

Esse gancho para a próxima temporada é já deixado no último episódio da segunda temporada, um que deixará os espectadores ávidos dos próximos capítulos. "Não podemos dizer qual é o plano, mas temos uma piada entre nós: vamos parar quando o tráfico de cocaína acabar", contou Newman. "Há um motivo pelo qual chamamos a esta série Narcos, e não Pablo Escobar."

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