"Não sei se ainda tenho forças"

As chamas consumiram 80% do pinhal de Leiria, propriedade do Estado, com mais de 11 mil hectares. Autarcas falam em falta de limpeza. Entre São Pedro de Moel e a praia do Osso da Baleia ficou um rasto de destruição
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Era uma espécie de neblina, mas de fumo, que ontem cobria toda a costa do distrito de Leiria, sobretudo entre São Pedro de Moel (Marinha Grande) e a praia do Osso da Baleia (Pombal), varrida pela ventania de fogo na tarde--noite de domingo. O incêndio que começou na praia da Légua, em Pataias, foi descendo pela costa à medida que destruiu uma área calculada em 80% do pinhal de Leiria, a mata nacional transformada agora em cinzas e lume, dor e perda.

"Não perdemos vidas, mas perdeu--se muito da nossa vida", diz ao DN Ana Paula Silva, horas depois de regressar a casa, em Vieira de Leiria. Na véspera, quando percebeu a dimensão da nuvem de fumo que se aproximava, lembrou-se da aflição que já vivera em 2003. Preparou uma pequena mala com roupa e meteu-se no carro com a mãe, de 82 anos, em direção à Base Aérea de Monte Real, onde passaram a noite. Quando o fogo passou ao largo da Praia da Vieira, seguindo para a praia do Osso da Baleia, já na fronteira do concelho de Pombal com o da Figueira da Foz, estavam a salvo, mas de coração apertado. "Ouvíamos dizer que tinham ardido casas, fábricas, escola, parque de campismo, afinal salvou-se muita coisa, mas é desolador." Só quando voltaram à Vieira tomaram consciência de que a terra já não era a mesma. A escola salvara-se, afinal, mas o fogo destruiu casas, oficinas, empresas, um parque de campismo.

Entre a cortina de fumo que desceu ontem sobre toda a região de Leiria, o DN percorreu a estrada Atlântica no sentido inverso ao do fogo, horas antes. E foi possível perceber porque foi ativado o Plano Municipal de Emergência de Pombal, que levou à evacuação de algumas aldeias da freguesia do Carriço. Populares foram acolhidos em duas coletividades, e acabaram por regressar às suas casas de manhã, à exceção de duas famílias cujas casas arderam.

Em Vieira de Leiria (concelho da Marinha Grande), o fogo abrasou casas de habitação, uma fábrica de cartão, uma oficina de automóveis. Carlos Feijão está à porta de casa, ou "do que resta dela", confortado por vizinhos e amigos. Lá dentro, mal se respira. Cá fora, Carlos sufoca de revolta: "Há cinco anos que o terreno aqui ao lado não era limpo. Nunca se conseguiu identificar o proprietário. Eu fui limpando à beira, mas sabia que estava aqui um barril de pólvora. Por isso há um ano fui à junta, à câmara, à Proteção Civil, à GNR. Todos empurraram o assunto. Vieram tirar umas fotografias. Até hoje". Ou melhor, até ontem, quando Carlos pegou numa mangueira para apagar as fagulhas que caíam na frente da casa. "Quando dei por ela, já estava tudo a arder na parte de trás." Apagou o que pôde. Quando os bombeiros finalmente apareceram, traziam "um carro com 400 litros de água. E a bomba de água que existe aqui na rua estava tamponada". Ao lado, a oficina de Filipe Pereira está lotada de carros. A maioria ardeu. Como aconteceu com uma fábrica de cartão. Ou com os bungalows do parque de campismo da Praia da Vieira. Francisco Nunes, 73 anos, enxuga as lágrimas enquanto olha para os destroços. "Se eu fosse novo, ainda tinha tempo de reconstruir tudo. Assim não sei." Aos poucos, chegam os outros vizinhos do parque, que foi evacuado antes de o fogo se entranhar num tufo de eucaliptos, ali à entrada. "Alertámos tanta vez a Proteção Civil", conta Manuel Branco, que pela sua vez vê destruída a "segunda casa". A primeira foi em 2012, depois do temporal. "Agora não sei se ainda tenho forças para isso."

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