"Não se admirem se o cheiro for um pouco sui generis"
O cheiro é, realmente, sui generis, como tinha avisado o tenente-coronel José Afonso na apresentação inicial às duas dezenas de pessoas que se inscreveram para visitar os subterrâneos do Palácio Nacional de Mafra, na sexta-feira, à noite. São 21.30, hora da primeira visita a estas galerias começadas a construir quando o monumento, faz este ano 300 anos.
"É uma área de esgoto. Não se admirem se o cheiro for um pouco sui generis". O grupo agita-se. Acrescenta: "Podem visualizar um ou outro rato". Risos nervosos ecoam pelo hall dos frades, a sala de receção do convento, com os seus bancos corridos a toda a volta.
As palavras do militar dão voz à crença popular de que nos subterrâneos do paço mandado construir em 1717 pelo rei D. João V habitam milhares de roedores de proporções extravagantes. A ela se deverá talvez o êxito da iniciativa da Escola de Armas de abrir pela primeira vez estas zonas ao público. As visitas acontecem uma vez por mês, e "já estão esgotadas até dezembro", como conta, no final na visita, o sargento-chefe Paulo Inácio, a primeira pessoa a admitir que "o espaço não é muito apelativo". Afinal, aqui se concentram águas pluviais, 90% do total, e resíduos do monumento, Escola de Armas incluída.
Foi preciso fazer limpezas e arejar. "Criam-se gases", justifica o sargento Paulo Inácio. O cheiro não era afinal problema. Fátima Bento, uma das visitantes, descreve-o como o de "águas paradas", e os ratos só apareceram na imaginação de Joel, o seu filho de 8 anos.
Para chegar à entrada escolhida atravessa-se o convento até chegar ao outro lado, o norte, 232 metros em linha reta, até cruzar a porta das armas, guiados pelos militares e pelo diretor do Palácio Nacional de Mafra, Mário Pereira. A ambulância encarnada parada no meio da estrada assinala o lugar.
A tampa levantada no chão, diz o resto. A entrada para os subterrâneos faz-se descendo um escadote. Os visitantes levam arnês e capacete. Os militares não pouparam na segurança, começando na palestra introdutória do tenente-coronel Afonso. "Há riscos, que tentámos minimizar". A frase justifica a ambulância, o material de proteção e a declaração de responsabilidade assinada pelos participantes.
Lá em baixo, sobraram apenas talheres e cacos de pratos, que deixam perceber que estamos perto das cozinhas, como mostra a planta do palácio que Mário Pereira trouxe para a visita. O caminho percorrido, cerca de 40 metros, são ínfima parte dos cerca de 2 quilómetros de passagens. As galerias têm 1,5 metros de largura e um murete de 20 centímetros. Para as percorrer é preciso caminhar "de costas para a parede, deslocando-se lateralmente", avisa o tenente-coronel.
As galerias foram iluminadas com holofotes. "Esta semana vim aqui quase todos dias", diz o militar que acompanha a visita. De outra forma, os militares só entram aqui durante os cursos de combate em área edificada. "Porque é que se faz a visita à noite?", pergunta um dos visitantes. "Imagine-se isto a uma quinta-feira às seis da tarde...", responde o militar que lidera a coluna. Quando se trata de esgotos, é melhor não imaginar.