Nasceu no meio do peixe e do marisco, em casa, era Culatra uma ilha isolada e muito distante dos 20 minutos de barco que a separam atualmente de Olhão. Não estudou quando queria por falta de condições. Seguiu o sonho em adulta, inscreveu-se na universidade, mas foi impossível conciliar trabalho, associativismo e estudos, quando as aulas terminam à noite e já não há barco regular para a ilha. É produtora de ostra, uma unidade familiar que explora com o filho. Preside à Associação de Moradores da Ilha da Culatra, na linha da frente e a lutar por água, luz, escola, médico, assistência social. Não suporta injustiças e sempre acreditou que ia conquistar direitos para a população. Quer, agora, que percebam que também têm deveres. Proteger a ria Formosa, preservando o seu meio ambiente..Nasceu na Culatra há 54 anos, em casa, a ilha estava assim tão distante do resto do país? Estávamos completamente isolados. Havia uma parteira, que era a madrinha de todos, foi a minha madrinha/parteira que assistiu a minha mãe. Nasci em fevereiro e, nesse mês, o tempo não facilita no mar. Os barcos eram instáveis, a remo, acabei por nascer em casa, tem muito que ver com as condições de transporte e o tempo..Não havia barcos regulares para fazer a travessia para Olhão? Havia, mas era um de manhã e outro ao final da tarde..Quantas pessoas viviam na ilha nessa altura? Praticamente as mesmas que agora, cerca de 850. Eram menos famílias mas mais numerosas, seriam umas 200 famílias e com vários filhos. Na minha família éramos cinco irmãos. Agora há mais famílias, mas são menos numerosas, os filhos vão ficando, que é o que se pretende..Quem foram os primeiros ocupantes da ilha da Culatra? Eram pessoas que tinham aqui as armações para a secagem do atum e da sardinha. Construíram as suas casas para vir trabalhar e foram ficando. A ria Formosa tem potencial de marisco, de peixe, que lhes permitiu trabalhar e viverem disso. Ocuparam este sítio por uma questão de sobrevivência, já a minha avó aqui nasceu. Hoje é uma aldeia de pescadores..A taxa de mortalidade infantil no país em 1966, ano em que nasceu, era de 64,7 bebés por cada mil nascimentos, agora é de de 2,8 por mil, a situação era mais grave na ilha? Por acaso, tive um irmão que acabou por falecer. Não tínhamos nada: água potável, eletricidade. As famílias viviam da pesca e muitas delas com muitos filhos, as condições de vida eram insuficientes..Criança sem poder estudar.Como é que estudavam? Tínhamos o ensino obrigatório da altura, até à 4.ª classe. Eu acabei por fazer o 6.º ano, mas nem todos da minha geração o fizeram..Através da telescola? Sim. No 5.º e no 6. º anos assistíamos às aulas pela televisão e tínhamos uma professora para Ciências e outra para Matemática. No ano em que acabei a primária, começou aqui a telescola, ainda bem, porque tive a possibilidade de estudar mais dois anos na ilha. Os meus pais não tinham possibilidades para eu ir para fora estudar..Quem ia estudar para Olhão tinha de lá ficar a viver? Os horários dos barcos que faziam as carreiras regulares não eram compatíveis com os horários das aulas. Os que estudavam ficavam em casas de familiares. Mais tarde, algumas famílias ganharam poder económico e compraram casa em Olhão, tinham onde ficar quando estudavam ou quando faziam tratamentos médicos. Quer queiramos quer não, a ria Formosa separa-nos do continente. É uma vantagem e, noutras situações, é uma desvantagem..Mas Olhão fica a 20 minutos de barco da ilha da Culatra. Hoje, Olhão é aqui ao lado, temos barcos compatíveis com os horários das escolas, táxi marítimo, meios de transporte próprios. A Culatra de hoje não tem nada que ver com a de há 40/50 anos. Na minha adolescência, via Olhão ao longe, via as luzes à noite. A Culatra era escura, não havia iluminação pública. A televisão funcionava com baterias e algumas pessoas tinham geradores, que só ligavam à noite Só em 1992 tivemos iluminação, nessa altura, constituímos uma associação para defender condições de vida para a população. Estávamos esquecidos e não havia as formas de reivindicação e de chamar a atenção como hoje. Não havia comunicação social que nos desse voz..Está a falar da Associação dos Moradores da Ilha da Culatra [AMIC], a que preside há 14 anos. Não a fundei mas acabei por abraçar este projeto em 1996. A associação nasceu de um boicote eleitoral às eleições legislativas, em 1987. Criámos a nossa voz, primeiro através de sucessivos boicotes às eleições, e fomos conseguindo trazer para a Culatra o que é necessário para que a comunidade viva com as condições básicas..Chamam-lhe a "presidenta" da ilha da Culatra, aceita o cognome? Presidente não, identifico-me muito com a luta que fiz ao longo dos anos para melhorar as condições de vida das pessoas. Sinto-me responsável por dar a todos nós - também vivo cá - melhores condições de vida, da mesma forma que sinto que devo pedir à população uma responsabilidade acrescida para com o meio ambiente. Esta luta da associação com a população é um trabalho de união, de força. Tenho uma equipa de 15 pessoas, espetaculares, voluntárias, que me apoiam em tudo..Ninguém na associação recebe ordenado? Só temos duas meninas com ordenado, além de dois estagiários. A equipa é composta por pescadores, mariscadores, domésticas, cada um na sua área, todos voluntários. Temos feito um trabalho que está à vista de todos e que é reconhecido..Conquistas de 30 anos.Ainda se sentem isolados do resto do país? Não se sente o isolamento, também porque hoje o mundo é virtual, é diferente, Naquela altura, sentia-se muito o isolamento. Fazíamos o transporte em barcos próprios, quem os tinha. Não havia água potável, luz, escola até ao 6.º ano, o centro social, uma delegação do centro de saúde com uma enfermeira e um médico que vem uma ou duas vezes por semana, um barco-ambulância, a Casa da Cruz Vermelha, e serviços de apoio à comunidade prestados pelas associações da ilha, a Associação Nossa Senhora dos Navegantes presta apoio aos velhotes e às crianças.. Tudo isso se conquistou nestes 30 anos..Voltando aos seus tempos de menina, uma menina que gostava de estudar mas que ficou pelo 6.º ano. Fiz a telescola e não dei continuidade. Fiquei um pouco parada, perdida, à espera de uma oportunidade para continuar os estudos, porque sempre tive uma grande sede de conhecimento. Hoje, com um pequeno aparelho, um telemóvel, podemos pesquisar tudo, naquela altura não havia nada. Quando voltei a estudar já tinha 20 anos, ficava em casa de familiares, fui tirar um curso de Contabilidade que dava equivalência ao 9.º ano e que terminei depois de casada. ..Casou-se com que idade? Com 22 anos, com uma pessoa de Olhão, para onde fui viver. Tive um filho aos 23 e continuei os estudos. O curso deu-me a possibilidade de trabalhar 12 anos num gabinete de contabilidade. Quando me separei, voltei para a Culatra e continuei os estudos..Chegou a inscrever-se na Universidade do Algarve, em que curso? Em Gestão, mas não cheguei a terminar. A universidade era em Faro, trabalhava de dia e estudava à noite. Estava a viver na ilha e não tinha transportes para regressar a casa, ainda tentei fazer o curso diurno mas não era compatível com o trabalho. Tive de desistir, ficou a meio..Mais uma vez... Sim, mas o curso também não era uma coisa que fizesse falta. Tinha mudado de trabalho, estava numa atividade marítimo-turística, e mais interessada nas questões ambientais. Sempre tive um fascínio pela ria Formosa e, no trabalho que tenho desenvolvido na associação, fui ganhando consciência de muitos problemas, pela defesa do ambiente, que me fez ser o que sou hoje. Esse voluntariado tem-me permitido crescer e ganhar conhecimento em diversas áreas, em estudar vários dossi^es. Adquiri conhecimento que não tive oportunidade de desenvolver na altura certa, quando temos idade para estudar e para absorver tudo..De onde é que vem essa sede de conhecimento, de saber mais? Acaba por ser natural. Lido muito mal com as injustiças. Viver num meio onde me foi cortada a possibilidade de fazer um caminho normal de estudante, de fazer o que gostaria, fez que ganhasse essa vontade de saber mais, de criar as condições, pelo menos, para dar aos mais jovens o que não tive..O que é que fazia na atividade turística? Fazia passeios turísticos e dava a conhecer o potencial da ria Formosa, a importância do equilíbrio entre as pessoas e o meio. Iniciei praticamente a atividade turística na ria, que era vista como um canal de navegação para dar acesso às ilhas, quando é mais do que isso. Foi isso que me fascinou, dar a conhecer a ilha como um todo, fiz esse trabalho durante vários anos, depois, mudei outra vez. Hoje, sou produtora de ostra..Turismo mais organizado.Porque é que deixou o turismo? Já não me revia no turista que aparecia e na forma como estavam a explorar a ria [suspira]. Tenho um respeito muito grande pela ria..Sente que a ria Formosa está a ser desrespeitada? Gostava de que houvesse um equilíbrio maior. Às, vezes as pessoas têm a ideia de que o mar leva tudo, que pode tudo, e há uma capacidade de carga para tudo e para todos. A ria não é exceção..Isso significaria menos turismo? Um turismo mais organizado, com outras responsabilidades ambientais, permitindo um equilíbrio entre as várias atividades que se fazem na ria. É uma grande área de produção de bivalves, alimenta milhares de pessoas, desde mariscadores, viveiristas de amêijoa, de ostra, lingueirão, berbigão; tem um sapal, que abriga várias espécies; e a atividade marítimo-turística, com visitas ao santuário de cavalos-marinhos, turistas, embarcações. Tem de haver um plano para que tudo seja gerido de forma harmoniosa, sem excessos. A minha preocupação é se matamos a galinha dos ovos de ouro..Sente que estamos nesse ponto? Sinto que temos de tomar medidas. Falo sempre em nome de duas pessoas; na Sílvia que é produtora de ostra e na Sílvia que é responsável por uma comunidade que vive da ria, que também é responsável pelo ambiente. Tiro proveito da ria mas quero dar alguma coisa em troca, quero protegê-la, dar o meu contributo para a melhorar. Nós, a associação, ficámos com um fundeadouro em frente da ilha que abriga centenas de barcos desorganizados, a despejar para a ria, e vamos organizar estas embarcações, tratar as águas, o lixo..É produtora de ostra desde quando? Desde 2012, não tem que ver com a associação. A intervenção da associação foi organizar os produtores, o objetivo é que as famílias mantenham as áreas concessionadas. São viveiros que podem explorar mediante uma licença anual. Os viveiros são parcelas e cada família tem uma parcela..Todas as famílias que vivem na Culatra fazem produção de bivalves? Quase todas produzem amêijoa ou ostra e muitas são de mariscadores que apanham a amêijoa em banco natural. São pequenas áreas familiares e há 15/20 anos que se começou a produzir ostra na ria Formosa. Nessa altura, vieram os franceses que queriam transformar essas pequenas áreas em grandes empresas de produção. Para combater isso, a associação apoiou as famílias para serem eles próprios a produzir, quer a amêijoa quer a ostra, para não se perder a identidade..Quantos produtores existem na ilha? Uns 20 produtores de ostra e 60 de amêijoa. A área de produção deve estar equilibrada em relação às espécies e esse trabalho tem sido feito pela associação, no sentido de rentabilizar um negócio. Em 2008, com a vinda da crise, alguns produtores de amêijoa sentiram que não era rentável só produzir amêijoa e começaram a produzir ostra..Como é o processo de produção? A amêijoa está nos bancos naturais da ria e temos os mariscadores que a capturam pequena para se fazer o repovoamento nos viveiros, o próprio viveiro é também reprodutor. Tudo é feito dentro da ria, da forma artesanal, com uma faca de mariscar, sem máquinas. A ostra é comprada em maternidade, os juvenis a que chamamos a semente. Compramos com um grama e é colocado em bolsas, sacos de rede, um ano e meio até atingir as oito gramas e estar pronta para comercializar..As ostras são particularmente boas nesta zona, daí serem muito apreciadas em França, que deve ser um dos países que mais a consomem. Temos uma qualidade de água excelente, vem do oceano e renova-se sempre que a maré enche, um sol maravilhoso. Tudo é feito de forma manual, estamos sempre a mexer, a repor e a mudar de malha. É um trabalho físico puxado mas tem uma rentabilidade que compensa. É o que defendo, que cada família tenha a sua pequena área para que possa produzir e depois escoar..Exportação para França.Para onde vendem a ostra? Mandamos para França, algumas ostras ficam cá, mas o consumo em Portugal ainda é muito pouco para a quantidade que se produz. Não temos problemas em escoar..A pandemia afetou o negócio? Baixou um bocadinho, mas a produção acaba por seguir para França sem problema, porque tem uma qualidade especial e extra. Com a covid ficou mais que provado que o Algarve não pode viver só do turismo, ficar dependente de uma atividade. Na Culatra, sempre trabalhámos, mesmo durante o estado de emergência, porque vivemos do setor primário. O marisco caiu um bocadinho, também está associado aos restaurantes, aos hotéis e ao turismo. Baixou um bocadinho o preço, mas as famílias continuam a trabalhar, a trazer pão para a mesa, a ter a sua situação defendida. Temos altos e baixos, mas o certo é que não pusemos todos ovos no mesmo cesto e não nos transformámos todos em guias turísticos.."Em casa estou no mundo".O que é que aprendeu nestes meses? Costumo dizer que em casa estou dentro do mundo, é tudo virtual, tudo fácil, o que se tornou muito evidente nesta pandemia. Quando saio de casa para ir ao café, ao restaurante, estar com amigos, estou mais dentro da bolha. Com este trabalho da associação há sempre assuntos por resolver, a minha vida tem sido sempre encontrar soluções. Esta questão da quarentena veio dar-me ainda mais a sensação de que, quando estou em casa, estou dentro de um mundo. É em casa que vou à procura das minhas coisas, do que gosto de fazer, do que gosto de ler, de ouvir. Hoje a internet tem tudo o que preciso..A ilha é pouco turística ao contrário das ilhas vizinhas, qual é a razão? Sempre lutámos para que fossem dadas condições às pessoas que aqui trabalham, à população que vive da ria, e que a Culatra tivesse um estatuto de aldeia, que não a transformassem num estatuto turístico. Muitos jovens da Culatra são da pesca, querem continuar aqui e não têm de concorrer para a compra de uma casa como quem tem dinheiro e quer uma casa de férias, é isso que temos de conservar e proteger. Não faz sentido ter uma Culatra viva no verão e morta no inverno, aí perdemos tudo o que conquistámos..Não há casas de segunda habitação? Não é isso que queremos. Cada casa que for transferida para segunda habitação, para casa de férias, é um soldado perdido para o que se pretende e que é trazer condições para os que vivem na ilha..Os primeiros títulos de licenças de habitação foram dados há um ano, já foram todos entregues? Não, é um processo que tem sido muito demorado. É uma pena que o Estado leve tanto tempo a resolver o problema das habitações e que é preciso regularizar quanto mais depressa melhor, para se fazerem cumprir as regras. Sempre pedimos, e temos estado ao lado dos sucessivos governos, para criar regras e que se defenda a identidade da Culatra. Tem de haver regras para que as casas não possam ser vendidas, devem ser transferidas de pais para filhos, para os que trabalham e vivem da ria. Não pode haver excessos e perder-se a identidade da ilha. Ocupamos este terreno há 200 anos para quem aqui trabalha, para quem vive da pesca, em defesa desta comunidade..Criadas as condições básicas, qual é a próxima luta? Quero passar a mensagem que é um privilégio viver aqui e que temos de cuidar do espaço onde estamos inseridos, respeitar a natureza. Temos um projeto em parceria com a Universidade do Algarve e outras instituições, que permite a transição energética e dar à população a possibilidade de ter melhores hábitos ambientais, cuidar do meio, ensinar, dar conhecimento. E, depois, as pessoas devem praticar, não jogar lixo no mar, trazer plásticos para terra, reciclar, reutilizar, transformar os telhados de amianto em telha fotovoltaica. E, em 2030, poderemos estar a vender eletricidade, vamos ver como é que corre e espero que as pessoas estejam abertas a essa mensagem [Culatra 2030, Comunidade Energética Sustentável, um projeto-piloto de energias renováveis na ilha]..Pensa que a população se vai envolver tanto nessa luta como o fez para lutar por serviços essenciais, por uma habitação? Sei que pode não ser muito fácil mudar mentalidades, mudar comportamentos. Uma coisa é lutar por questões de sobrevivência, em questões básicas todos lutam para o mesmo lado, outra é quando se trata de deveres. Mas não podemos só querer direitos, também temos deveres..Qual considera que foi o dia histórico para as vossas conquistas? É o dia 19 de julho de 1987, a primeira vez que a população se apercebeu de que estava em perigo e boicotou as eleições legislativas. É o Dia da Ilha e do aniversário da associação..E o 21 de junho de 2019 quando foram entregues os primeiros títulos de habitação, depois de 30 anos em que a perspetiva era a demolição das casas? Esse é o reconhecimento, ao fim de 200 anos de luta, de que as pessoas têm direto à habitação. Os títulos são de 30 anos, renováveis.."Uma questão de justiça".Alguma vez perdeu a esperança de que iria acontecer? Não sou muito de perder a esperança, acredito sempre, mesmo quando todas as pessoas dizem que não vai ser possível, como nos vários projetos que tivemos ao longo dos anos, principalmente o da água potável, que já era um caso de saúde pública, para mais quando se estava num processo de demolição de casas. Insisto sempre naquilo em que acredito e com convicção, porque é uma questão de justiça. Faz-me batalhar, batalhar, até conseguir..A sua principal ambição é viver e trabalhar em harmonia com o ambiente? Viver em harmonia com o meio e que todos respeitem o meio onde vivem. O ser humano, que é aquele que tem capacidade para pensar, deve proteger todos os outros seres, se não fizer isso, está tudo perdido..Consegue ter tempos livres? O que faz? A minha vida é uma correria, aproveito a praia, as caminhadas, os convívios com as minhas amigas, e com o melhor que a ria e o mar nos dão.