Não podemos esquecer, nem voltar a falhar

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Com a diminuição do número diário de novos infetados pelo novo coronavírus, e também com a diminuição do número global de doentes internados - em parte, provavelmente, ainda à custa de um número de mortos intoleravelmente elevado -, enfrentamos o sério risco da banalização e da insensibilidade geral perante a tragédia, do suspiro de alívio demasiado cedo. E suspirar de alívio ou atirar para trás das costas a memória deste tenebroso início de 2021 é, precisamente, o que não podemos fazer.

Nenhum de nós está isento de responsabilidades nesta catástrofe, como não está nenhum responsável político, incluindo os partidos da oposição que, por omissão, foram sendo coniventes, pelo menos até certa altura, com a gestão da pandemia. Mas há uns mais responsáveis do que outros e os políticos com funções governativas devem assumir a principal parte dessa responsabilidade, até porque Portugal foi o terceiro país da zona euro que menos recursos públicos gastou no combate a este flagelo (quantificados em percentagem do PIB nacional).

Não acompanhamos a ideia, um pouco em voga, segundo a qual a gravidade da crise sanitária justificaria uma espécie de autocontenção ou autolimitação no exercício da liberdade de opinião e no normal confronto de ideias democrático. Faz fraca ideia de si próprio e dos seus concidadãos quem pense que, para cumprirmos, como obviamente devemos, todas as determinações emanadas do Governo temos de despojar-nos de qualquer sentido crítico. Não precisamos deste paternalismo e a crítica construtiva só serve, e tem de servir, para melhorar, se houver humildade e sentido ético e de responsabilidade política.

Importa, portanto, lembrar que esta avassaladora terceira vaga - que colocou Portugal no topo dos países afetados pela pandemia, quase um ano após o seu surgimento na Europa - não foi prevista, embora devesse tê-lo sido. Aliás, esta afirmação talvez nem seja inteiramente rigorosa, porque, deixando de lado a discussão em torno do afrouxamento das medidas de contenção durante o Natal - que recolheu amplo (agora, reconhecidamente lamentável) consenso entre todos os responsáveis políticos -, os avisos para a tragédia que depois sobreveio começaram ainda na primeira semana de janeiro.

Com efeito, logo no dia 8, Fernando Maltez, diretor do serviço de infeciologia do Hospital Curry Cabral, deu uma entrevista a um canal de televisão privado onde opinou, com clareza, no sentido de que o confinamento estaria, já então, em atraso e que seria indispensável a suspensão do ensino presencial, pelo menos para os graus de ensino mais avançados, sob pena de ser impossível conter a pandemia. E no mesmo sentido se pronunciou, em entrevista concedida a uma estação de rádio ainda antes da reunião ocorrida no Infarmed dia 12, Adalberto Campos Fernandes, médico e reputado ex-ministro da Saúde num Governo do PS, afirmando que era necessário evitar um confinamento "a meio da ponte" que não travasse suficientemente a exponencial propagação do vírus.

No dia 13, contra o que seria previsível, o Governo decidiu não suspender qualquer atividade letiva presencial, o que, segundo foi referido na comunicação social, implicaria manter a mobilidade de cerca de 2 milhões de portugueses. Apenas no dia 15, três semanas após o Natal, entrou em vigor o confinamento decretado pelo Governo, com a constatação empírica, espelhada em diversos órgãos de comunicação social, de que, pelo menos em Lisboa e Porto, registavam-se elevados índices de mobilidade.

No mesmo dia 15, à noite, em entrevista a um canal de televisão privado, o pneumologista Filipe Froes, coordenador do Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos, afirmou que o SNS estava já em situação de rutura, no limiar do esforço possível e apenas a adiar a instalação do caos, sendo necessário rever com urgência a manutenção da abertura de todo o ensino escolar e universitário.

No dia 16, foi noticiado que, num cenário mais pessimista, o número de internados chegaria a curto prazo aos 7500, dos quais mais de 900 em cuidados intensivos, segundo cálculos da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares.

Outros exemplos e outros factos poderiam ser invocados, mas não parece necessário. Estes são suficientes para que se possa questionar, legitimamente, a demora no decretamento do confinamento e na tomada de medidas como a suspensão do ensino presencial, o fecho de fronteiras, a apressada e precária contratação de profissionais de saúde e até o acionamento de mecanismos de ajuda internacional. Já para não falar na dificilmente compreensível preponderância assumida pelas reuniões "plenárias" no Infarmed, em vez de ser constituída uma comissão de peritos independentes capaz de oferecer, a qualquer momento, a necessária base científica do processo de decisão política.

Errar é humano e as boas intenções do Governo certamente não podem ser postas em causa, o que é coisa diferente de questionar as escolhas e os resultados da atuação governativa. Mas não é menos certo que já não há qualquer margem para mais erros, no confinamento ou no desconfinamento - que em 2020 não correu bem, sobretudo na região de Lisboa e Vale do Tejo -, e que até à conclusão do processo de vacinação, que vai ser complexo e moroso, o Governo, as autoridades de saúde e nós próprios não podemos descurar minimamente os riscos, sob pena de agravarmos novamente a crise sanitária e comprometermos, ainda mais, a retoma económica.

Teremos, assim, de manter bem cerradas as fileiras nesta guerra sem quartel contra o vírus, mas também contra a indiferença, contra o laxismo, contra a iliteracia clínica, contra a irresponsabilidade social.

Teremos de fazê-lo por nós próprios e por todos os que morreram, pelos doentes com sequelas para a vida, pelos doentes não-COVID que ficaram por tratar e por diagnosticar, pelos profissionais de saúde, pelas crianças e jovens sem ensino presencial, pelos que perderam ou vão perder o emprego. Pelo horizonte de futuro tão gravemente perturbado e por todas as angústias e todos os dramas humanos que se aceitam nessa incerteza.

Rui Cardona Ferreira - Advogado e Doutorando da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

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