"Não podemos continuar a ter cuidados de saúde do terceiro mundo"

A troca de maioria absoluta deu ao PSD a primeira vitória em 45 anos. Marta Prates enfrenta "uma herança pesada e difícil". 70% do dinheiro era gasto a pagar dívidas e empréstimos. A nova presidente tem uma certeza: "Não quero casar com o partido."
Publicado a
Atualizado a

"A saúde está péssima, até médicos já não os há", responde Maria Costa, sem hesitar, quando quero saber do "maior problema por resolver" em Reguengos. A mulher de "muita fé" que até rezou, e "muito", para que Marta Prates vencesse as eleições tem uma certeza: "Foi o meu Deus que me fez essa vontade, ai foi, foi... " A antiga funcionária do centro de saúde, agora reformada, que haveríamos de encontrar, quase frente à câmara, duas horas mais tarde, tinha ido "perguntar pela doutora", saber se "queria lanchar alguma coisa." "Fatias recheadas", diria depois.

O edifício da câmara municipal, na Praça da Liberdade, fica frente à Igreja de Santo António, padroeiro da cidade. Há esplanadas de um lado e do outro. Tudo tem um ar novo. "As obras acabaram sensivelmente no início deste verão. É a zona central de Reguengos, é a zona nobre, digamos, assim. A praça antiga estava obsoleta, basicamente era um cruzamento, não tínhamos espaço para termos as esplanadas, por exemplo, eram poucas", explica a nova presidente. "Fomos, enquanto oposição, a favor da remodelação, mas há aqui coisas por revolver. Se olhar - e avisa-me para não tropeçar - as patas de cavalo, é assim que a população chama aos delimitadores, estão a mais, são um problema. Há pessoas que caem, muita gente cai aqui. Se olharem em volta, a mancha que se vê é das patas de cavalo. Temos a intenção de substituir os delimitadores por floreiras, alguma coisa que seja amiga do ambiente, que não gaste muita água." O problema é este, as patas de cavalo? "Não, esta praça sempre foi uma praça com um cruzamento. Só quando terminaram as obras é que perceberam que o eixo da curva, para virar à direita em direção ao jardim, não dava. E então o antigo executivo o que decidiu foi pôr ali um sinal de proibido e não corrigir o erro. É importante para os reguenguenses poderem virar ali à direita, sobretudo porque a alternativa é a rua de cima, aquela onde está a virar aquela carrinha branca, que não está preparada para ser uma rua de trânsito. Na prática o que acontece é que quem quer vir de cima pode virar, mas quem vier daqui de baixo, do lado da câmara, já não pode."

Atravessamos a praça, passamos por duas esplanadas, por uns repuxos, em direção à Avenida António José de Almeida, a tal onde só "vira quem vier de cima", que nos levará ao jardim, ao "Parque da Cidade." "É pertinho, é já ali", diz-me Marta Prates que não se espanta com a nossa surpresa: estamos no Alentejo, mas a praça podia ser de qualquer zona do país. "É, tem razão, tem toda a razão. Esta obra podia ter sido menos agressiva. Podíamos ter tido as melhorias sem esta descaracterização, não se sente Alentejo."

Da avenida já se vê parte do jardim, "a parte de baixo antes da rotunda", do lado esquerdo há umas arcadas, umas mesas que parecem ser de cimento, dois homens sentados. Viramos à esquerda. O Parque da Cidade fica à direita. Ficou surpreendida com o resultado, a inversão total? "Eu sempre participei muito civicamente na terra, mesmo antes de estar da política formalmente. Fui fundadora da Associação de Pais, comissária na Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, participei muita na vida das coletividades da terra. Em 2017, quando recebi o convite para ser número dois na lista [do PSD], comecei a participar formalmente na política..." A frase fica a meio, Marta Prates está ofegante. "Vamos ter de parar um bocadinho, tive covid há pouco tempo. Sentamo-nos um bocadinho, pode ser naquele banco, está ali um banco à sombra."

Sentamo-nos. Há um café ali perto, no jardim. A esplanada, com uma dúzia de mesas, tem uma ocupada com quatro homens. Ouve-se música: Imagine de John Lennon. "E depois, na câmara, passámos a ser uma oposição ativa, o que não era normal em Reguengos. Este trabalho de ouvir as pessoas, ouvir o que pensavam, começou a dar frutos. As pessoas começaram a perceber que havia alguém que levava as questões para a câmara, que se interessava. E perceber que nos olhavam como alternativa foi incrível, politicamente incrível. Pensámos então que teríamos pés para andar com uma candidatura quando fosse tempo disso. E na campanha fizemos um trabalho de sapa, de ouvir toda a gente, cada empresa, cada coletividade. E percebemos qual era a necessidade do povo." Qual era? "Que fossem ouvidos, que fossem escutados." Só isso? "E que lhes resolvam os problemas. Não pode haver neste concelho pessoas que vão às seis da manhã para o centro de saúde só para apanhar uma consulta, não pode. Não se esqueça de que há aqui uma ideologia de base socialista, e de repente... uma viragem, à direita. O PSD começou por ser um partido de centro-esquerda, como o nosso líder afirmava, o Sá Carneiro. Um partido que, neste momento, está muito mais associado à direita do que ao centro." E você está associada onde? "... Eu [risos]... eu concorri como independente pela lista do PSD, não sou filiada em nenhum partido. Prezo o meu livre arbítrio, a minha liberdade, acima de tudo. Isto é um bocadinho como as pessoas que vivem em união de facto: gostam muita da outra pessoa, mas não querem casar-se. Há ali uma sensação de liberdade que não se quer perder." É por isso que não quer casar? "... [risos] Quero manter a minha liberdade. Por isso é que não quero casar com o partido. Não quero estar presa em nenhuma circunstância."

A mesa da esplanada que estava ocupada fica vazia. Alguns carros, poucos, passam na estrada que fica à nossa direita. Não se vê ninguém no jardim. Marta Prates parece já estar recuperada do cansaço súbito. Peço-lhe que explique o problema da marcação de consultas às seis da manhã. "Precisamos de ter uma saúde em condições, onde haja médicos. Há aqui situações em que as pessoas estão seis meses à espera de que o médico lhes veja umas análises. A saúde é horrível, é muito mau. É a primeira coisa para que temos de olhar." Como? "Vamo-nos sentar imediatamente com a ARS [Administração Regional de Saúde] e perceber como é que se pode resolver. Há câmaras municipais que pagam os vencimentos dos médicos, se for preciso fazê-lo fá-lo-emos, o que não podemos é continuar a não ter cuidados de saúde ou a ter cuidados de saúde do terceiro mundo." Terceiro mundo? "Estive numa missão humanitária em África, com a Cruz Vermelha, e lá aquelas pessoas iam para porta do centro de saúde às seis da manhã. E as minhas pessoas, as pessoas deste concelho, fazem o mesmo. Isto choca-me. É preciso fazer o que pode ser feito, agir, atuar. Nós não temos uma farmácia de serviço à noite, se precisar de um medicamento urgente tem de ir a Évora. Se você fosse médico, dava-lhe casa e se fosse preciso pagava-lhe o salário. Nós precisamos rapidamente de resolver a questão da saúde, rapidamente."

Saímos do jardim. Marta Prates quer mostrar-nos a biblioteca, antiga casa de férias do conde de Monsaraz. O caminho de regresso é o mesmo. Descer o jardim, virar à direita e seguir em frente, passando pela praça, pela igreja, até chegar ao antigo palácio. "Há outra coisa aqui complicada que é a falta de água para a agricultura. O famoso bloco de rega de Reguengos de Monsaraz [distribuição a ser feita a partir do Alqueva] que está prometido já nem sei há quanto tempo nunca mais acontece. Os nossos agricultores têm o Alqueva à porta, mas não podem usar a água. O concelho depende da agricultura, da vinha. O nosso motor fundamental é a vinha, e a obra continua à espera de licenciamento." E o turismo? "Queremos que o turismo seja uma alternativa económica à questão da vinha e da agricultura, mas é preciso formar pessoas." Se for a Monsaraz ninguém me sabe dizer o que estou a ver? "Arrisca-se a entrar na igreja, e está lá uma pessoa com muito boa vontade, que gosta do que faz, mas que não teve formação para lhe dizer o que está ver. No outro dia, falava com uma pessoa da área do turismo que me disse: "Eu às vezes tenho vergonha, sinto-me envergonhada porque as pessoas começam a querer saber coisas, a fazer perguntas, e eu não sei o que é que hei de dizer." Ora, isto precisa de mudar, é preciso dar formação. A nossa joia da coroa é Monsaraz, a vila medieval, mas temos nas pequenas aldeias muitos alojamentos locais onde as pessoas gostam de ficar pela calma e a serenidade. Agora hotéis só mesmo em Évora. Para que o turismo não se esgote, as pessoas têm de sair de cá com uma boa experiência, até porque os nossos motores são os vinhos e o turismo, o fator industrial é muito residual."

As "arcadas" frente ao mercado e as mesas que parecem de cimento estão agora mais cheias. Ao longe percebo que há quatro homens sentados e talvez outros quatro ou cinco em pé, a olhar. Do outro lado da rua, em pé, dois homens conversam, encostados a um barril, à porta de um café, "uma tasquinha". Daqui a minutos passaremos por eles. Marta Prates fala com tristeza, enquanto caminhamos devagar, da cultura que não "há". "Sabe o que é querer ver uma exposição e não haver? Quer ver um espetáculo? Não há. Ver um cinema? Não há. Ver um concerto? Não há. Neste momento, o que temos são as festas tradicionais. Os pais que querem sair com os miúdos vão para onde? Vão ali para o jardim, as crianças brincam um bocadinho no parque e esgota-se. No auditório municipal acontecem de vez em quando, muito raramente, algumas coisas..." E soletra: "De vez em quando." Como resolve isso? "O orçamento municipal tem de ter verbas para isto." E tem? "Tem de ter, há um problema grave nesta câmara que é o sobre-endividamento, é uma das câmaras mais endividadas do país: 19 milhões e 30 empréstimos ativos. Aqui 70% do dinheiro que se gastava não era em obra, era a pagar empréstimos de saneamento financeiro e uma dívida horrorosa e assustadora de 7,1 milhões de euros às Águas do Tejo. É uma herança pesada e difícil."

Estamos mais perto do grupo de homens. As vozes são audíveis. Jogam às cartas, já se percebe. "Se não tem dinheiro, como é que atrai médicos, músicos, pintores? "[risos]... Essa é a pergunta de um milhão de dólares, ou euros, o que lhe quiser chamar. Acho que terá de ser faseado, mas temos é de começar. A terra não pode continuar assim. Temos de olhar para o orçamento e perceber o que sobra para minimizarmos estas questões. É preciso ter vontade de fazer pelos outros."

Afinal, não eram oito os homens que víamos ao longe. Havia mais dois numa mesa ao lado, na conversa. Na mesa de jogo, um papelão serve de pano e de papel às linhas e traços dos pontos da sueca. "Boa tarde, estão bons, tudo bem? Como é que vai o jogo, é campeonato?", pergunta Marta Prates. "É campeonato, sim. E nós temos uma proposta para fazer à senhora presidente", responde Paulo Missas que está, em pé, a assistir ao jogo. Os quatro jogadores olham, mas nada dizem. Estão concentrados nas cartas. "A proposta é fazer aqui um torneio interfreguesias." "Uau... gosto muito", diz a nova presidente que acrescenta: "É só irem lá acima e bater à porta do gabinete, fico à vossa espera." Paulo Missas que é militante do PS desde 1982, desta vez votou no PSD por "coisas" que o candidato socialista "andou a dizer há tempos", antes das eleições. "Naquela altura não gostava de Reguengos e agora ia-se meter ali? Disse na minha rede de Facebook que no que dependesse de mim, da minha família e dos meus amigos "não chegas aí a meter os pés". Eu não disse pés, disse patas." E os senhores?, pergunto aos restantes. "Eles são de poucas conversas", atalha Paulo Missas. Quem são?, pergunta um deles. "São do Diário de Notícias", explica Marta Prates. Só Carmona Pires, que exibe um antigo porta-chaves que coloca em cima da mesa, decide falar, os outros estão focados no jogo. "É o meu partido de sempre. Se calhar o senhor não conhece este símbolo e o que está do outro lado..." Do outro lado está o rosto de Sá Carneiro, o símbolo é o primeiro do PSD. "Aqui não há dúvidas, não há dúvidas."

Dois cruzamentos depois estamos na praça. Em frente é a Rua do Conde de Monsaraz, passando ao lado da igreja. Seguimos a caminho da biblioteca. À medida que nos aproximamos, e enquanto Marta Prates, que já tem um livro de contos publicado, explica que "agora empanquei completamente" e que já não tem "tempo para acabar o romance" que começou a escrever, ouve-se cada vez mais nitidamente uma música, alguém a tocar trompete. "É a banda, a Banda Filarmónica Harmonia Reguenguense. Estão a ensaiar ou então é das aulas. Quer ir lá?." O "lá" é logo ali ao lado. Carla Mendes está na entrada e leva-nos ao andar de cima. "Aqui é a escola, é o Conservatório Geral do Alentejo." Muitos alunos? "Cinquenta e mais alguns, são do ensino articulado", responde. Ao cimo das escadas, percorremos um corredor estreito. Na sala do lado esquerdo, Ivo, 17 anos, estudante do 11.º ano, que vem todos os dias do Redondo para Reguengos, está a "estudar" trombone. "Sou apaixonado, identifico-me muito com a música." Desafiado a tocar, escolhe um estudo de Marco Bordogni, "um senhor francês que escrevia métodos para cantores que os instrumentistas usam por causa das vocalizações, da fluência do ar." Ficam frente a frente, Marta Prates e Ivo. A presidente assiste, atenta, ao Legato Studes. Ivo faz questão de tocar a peça na integra. Na sala ao lado, estão dois alunos. Simão, 14 anos, de braço direito engessado, toca trompete. É de Reguengos, também um dos alunos do ensino articulado, mas de "poucas palavras, prefiro a música".

O telemóvel de Marta Prates toca. Tem uma reunião para dali a minutos, mas ainda algum tempo para nos levar à biblioteca, a antiga casa de férias do conde de Monsaraz que já foi escola entre 1975 e 1988, e que foi restaurada há oito anos. Na sala multimédia, de olhos fixos no computador, José Lameiras, de 91 anos, está a ler notícias de jornais. São jornais espanhóis? "Gosto de ler jornais, mas eles agora têm isso controlado. Não dão as notícias todas, é preciso pagar. Dantes não era assim." Vem cá muitas vezes? "Venho para aqui todos os dias. Venho de manhã, depois vou almoçar e depois venho à tarde." O "todos os dias" tem uma tradução: há oito anos que não falta um dia. "E esta senhora, parece-me que a estou a conhecer." "É a presidenta", responde Marta Prates. Noutra das salas, e são dezenas as que existem, está outro leitor da biblioteca que se afasta. O Palácio do Rojão - que tinha 16 quartos, salão de baile, salão de jantar, salão de almoços, etc. - e que é biblioteca municipal desde 2013 -, acolhe 30 mil livros e entre outras memórias guarda os poetas de Reguengos. "O Manuel Sérgio, o Luís Filipe Marcão, o Raminhos... tantos outros", explica Marta Prates.

Descemos a enorme escadaria do palácio - "uma beleza", diz a presidente - e encaminhamo-nos para a câmara municipal. Subimos a rua e viramos à direita. Metros adiante, surge Maria Costa, "apoiante a ferro e fogo", animada pela mudança porque "já estava farta dessa gente que estava aí à frente. Foram muitos anos, mas isso era o menos. Agora a gente ver as injustiças que faziam, havia filhos e enteados, não éramos todos iguais." E a nova presidente? "Vai trabalhar para todos. E um destes dias venho cá para lhe dar umas fatias recheadas, já sei de uma pessoa que as faz bem."

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt