"Não penso que alguma vez Centeno tenha tido essa suspeita de ser um segundo Varoufakis"
Jeroen Dijsselbloem liderou o Eurogrupo durante cinco anos, durante um período de uma outra crise. As comparações que fez, a certa altura, sobre os países do sul foram particularmente controversas. Hoje, dirige o Dutch Safety Board, o Conselho de Segurança dos Países Baixos, que tem entre mãos as investigações à abordagem do país à pandemia.
Nesta conversa, gravada por videoconferência entre Bruxelas e Amesterdão, falámos sobre plano da Comissão Europeia para a recuperação da economia, sobre Mário Centeno, agora que está de saída do Ministério das Finanças e do Eurogrupo, sobre o plano de recuperação para a Europa e ainda sobre as discussões que levaram o primeiro-ministro português a criticar o tom do discurso do atual titular da pasta de Dijsselbloem, que já assumiu no Ministério das Finanças em Haia.
A Europa está a ser atingida por uma crise sem precedentes, para lá de tudo o que conhecemos. Para já, com uma contração superior a 3%, apenas no primeiro trimestre, de acordo com os dados atualizados do Eurostat. Está preocupado com as proporções que a crise atual está a tomar?
Estou profundamente preocupado. Esta crise é muito mais dramática do que o que vimos na crise financeira e na crise do euro. Se nos lembrarmos de 2008, foi na verdade uma crise lenta. Começou já no final de 2007, tornou-se mais forte em 2008, 2009. E, é claro, no final, levámos cinco a seis anos para a superar. Esta crise não só é muito mais profunda como ocorreu muito mais rapidamente e agravou-se a uma velocidade enorme, como nunca tínhamos visto. Além disso, é uma crise que não vem dos mercados financeiros ou da própria economia. Vem de uma crise de assistência médica, que obrigou os governos, em certa medida, a quase parar a economia. Isto põe muita responsabilidade nos governos para tentarem restaurar a economia. Então, sim, é diferente. Eu diria que é ainda mais dramático e acho que os efeitos são ainda mais dramáticos do que o que vimos antes.
Mas, desta vez, em três meses, já há um plano de recuperação. Considera isso uma lição das crises anteriores?
Exatamente. A última crise, em 2008, levou quatro anos - na minha análise -, antes que houvesse uma verdadeira resposta conjunta europeia ou da zona euro. Quatro anos de intermináveis debates, entre [Angela] Merkel e [Nicolas] Sarkozy e muitos outros sobre o que significa ter uma união monetária. Se deve haver solidariedade ou como deve ser? E levou quatro anos. Só se conseguiu em 2012, quando Mario Draghi assumiu o cargo no BCE. Foi aí que isso mudou. Apenas num encontro, em 2012, tomámos algumas decisões importantes sobre política monetária, mas também sobre a união bancária que cria o Mecanismo Europeu de Estabilidade, o fundo de emergência para a zona euro. Tudo isso aconteceu em 2012. Graças aos Deuses, desta vez agimos ou esperamos que se aja mais cedo. Espero que isso seja uma lição aprendida.
Agora temos ouvido um discurso diferente da França e da Alemanha, se tivermos em conta o que disseram no início da crise anterior. Desta vez traçaram um rumo para o plano do recuperação, com a proposta de 500 mil milhões em subvenções a fundo perdido. Mas tem havido também vozes dissonantes no Conselho. Refiro-me a Áustria, Dinamarca, Suécia e Países Baixos. Como é que vê o posicionamento dos chamados "países frugais", que defendem um plano assente em empréstimos?
Penso que uma recuperação baseada no aumento da dívida soberana, em vários países, é muito arriscada. Como sabe, os níveis de dívida já são muito altos. E, por causa das respostas nacionais dos governos à crise atual, ainda estão a aumentar mais. Assim, dar ajuda em forma de empréstimos é uma estratégia muito arriscada. Por outro lado, também tenho alguma compreensão com a posição dos quatro frugais. Ora, se vamos ter uma dívida conjunta, então como podemos dar-lhe legitimidade democrática? Como podemos influenciar a forma como esse dinheiro é gasto e onde é investido? Por outras palavras, é uma questão de princípio, garantindo que assumir dívidas segue de mãos dadas com a responsabilidade política, controlo democrático etc. Acho que a resposta para isto - para este debate em curso sobre empréstimos e dinheiro a fundo perdido - é termos programas. E isso faz parte da proposta da Comissão. Portanto, não estamos a falar de dívida europeia conjunta e de gastos nacionais. Estamos a falar de dívida europeia conjunta e de gastos europeus. O que significa que o dinheiro será controlado e gasto pela Comissão Europeia, com base em planos, projetos e propostas apresentados pelos governos nacionais ou por setores industriais. Mas continua a ser um programa europeu - dinheiro europeu - sob o controlo democrático do Parlamento Europeu e do Tribunal de Contas Europeu.
Os programas estão dependentes de condições, o que faz lembrar os tempos da troika, quando os desembolsos estavam dependentes do determinadas metas.
Lembra-se disso. As críticas à troika tinham muito que ver com legitimidade democrática, e eram justas. Percebo essa crítica. Naquela altura, eu não tinha condições para mudar isso, e não consegui resolver esse problema. Mas se o dinheiro permanece sob o controlo do Parlamento Europeu, é gasto no quadro europeu, então considero muito mais legítimo do ponto de vista democrático que se faça dessa forma. Acho que a opção de contrair dívida conjunta, mas deixar um governo nacional a decidir como vai gastar o dinheiro, não me parece que isso funcione. É pela simples razão de que os contribuintes europeus são também eleitores europeus. E, se eles tiverem que assumir a responsabilidade da dívida conjunta, eles também vão querer ter uma opinião sobre como esse dinheiro é gasto, sobre quem o vai pagar e quando, etc., etc. Agora, se se fizer isso em conjunto com a Europa, com a gestão da Comissão Europeia, e sob o controlo do Parlamento Europeu, acho que ainda haverá uma palavra sobre para o que serve realmente esse dinheiro e como podemos garantir que ele é bem gasto - porque, é claro, essa é uma questão fundamental - e, ainda tem um enquadramento democrático. E isso será um grande passo em frente, em relação programas de resgate que tivemos na crise da zona do euro.
Algumas opiniões no Conselho têm levantado preocupações, dizendo que a Comissão está a propor medidas económicas ultrapassadas, para determinar quanto é que os Estados membros vão receber do fundo de recuperação. Dizem, basicamente, que não se enquadram nesta crise. Pelo que conhece dos debates europeus, espera que o plano de Von der Leyen sobreviva aos debates no Conselho?
Entendo que vai ouvir duas vozes diferentes no Conselho. Alguns dirão: bem, vamos lá ver, isto não pode ser feito por Bruxelas. O dinheiro deve simplesmente ser transferido para nós, os governos nacionais e estamos mais bem preparados para decidir como o gastar. Outro grupo de países no Conselho dirá: bem, olhem que nós nunca iremos assumir uma dívida conjunta e depois simplesmente transferir o dinheiro para os governos nacionais. Isso nunca vai acontecer. E, portanto, a solução da Comissão é politicamente inteligente, porque é uma solução a meio caminho neste debate muito polarizado. Mas acho que também é, por uma questão de princípio, bem projetada. Você tem de ter a possibilidade de se endividar lado a lado com a capacidade de cobrança de impostos - portanto, também devemos ter um debate sobre a tributação europeia - e deve andar de mãos dadas com o poder de decidir onde e quando gastar. E temos em Bruxelas todas as instituições capazes para fazer isso. Depois, torna-se um projeto conjunto, em vez de apenas uma dívida conjunta com projetos nacionais.
Falou da questão dos impostos. Até que ponto é que os governos não vão ter dificuldade para vender a estratégia da Comissão nos seus próprios países, especialmente por causa de alguns impostos, que estão previstos no plano?
Os europeus em geral já pagam um bocado em impostos, em comparação com outras regiões do mundo. Por outro lado, claro, em troca, temos um sistema de segurança social muito sofisticado, sistemas de pensões, assistência médica etc. Então, temos de nos assegurar de que essa nova tributação - ou tributação adicional - não atinja as mesmas pessoas novamente. Como todos sabem, grandes multinacionais - às vezes com sede na Holanda (e, então isso também é sobre a política fiscal holandesa) - estão a evitar pagar impostos. E isso é ainda mais verdadeiro para as grandes empresas de tecnologia, como a Apple e a Google. Essas são de longe as empresas maiores, mais poderosas e mais ricas do mundo. E agora é a altura de lidar com isso. Já existem iniciativas nacionais, alguns países já estão a tributar essas empresas. Mas ainda é muito pequeno e muito fragmentado. E há o risco de que essas empresas voltem a movimentar os próprios ativos e lucros de país em país, para evitar o pagamento de impostos. A melhor forma de resolver isso é ter uma estrutura europeia, um imposto europeu sobre as empresas para grandes multinacionais e um imposto europeu para empresas de tecnologia.
Vejo que está a defender uma ideia que vai afetar o seu país. Os Países Baixos, o Luxemburgo, a Irlanda vão acabar por ser muito atingidos com essas alterações ao sistema de tributação. Sabe como funciona o sistema político de Haia. Essa ideia tem condições para passar no Parlamento holandês?
Penso que os Países Baixos, com toda a honestidade, tiveram um modelo de negócio para acolher empresas internacionais. E isso serviu-nos muito bem, temos muitas sedes de empresas internacionais aqui em Amesterdão e em Roterdão. Mas a questão da justiça tributária - para que todas as pessoas e empresas contribuam para o sistema tributário de forma justa - é um tema importante neste momento. Penso que as pessoas estão muito cansadas da injustiça do nosso sistema tributário e da injustiça das multinacionais, num mundo globalizado. A Holanda tem de aceitar isso. Nos últimos anos, a posição holandesa já mudou. Quando eu era ministro em 2016, conseguimos um acordo, em Bruxelas, sobre a diretiva antielisão fiscal, que foi uma enorme revolução. Liderei essas reuniões para obter esse acordo. Nesse sentido, precisamos de mais coordenação e também harmonização de impostos na União Europeia. Por isso, acho que seria economicamente inteligente, punha travão à competição entre os Estados membros em matéria de política tributária. E lidaria com a questão enorme, que está diante de nós em cima da mesa, sobre justiça, e sobre esta crise atual, e sobre a crise financeira e da zona euro. Agora, a crise do coronavírus vinca uma vez mais que os efeitos dessas crises não são distribuídos de forma justa. Temos de lidar com isso, e os impostos fazem parte da solução.
Talvez tenha acompanhado os debates acesos no Conselho e o nível da troca de palavras. Considera compreensível ou justas as críticas que foram dirigidas ao Governo do seu país? O primeiro-ministro António Costa enfatizou bem as críticas, particularmente ao seu sucessor no Ministério das Finanças holandês, considerando as exigências de repugnantes, sem sentido e totalmente inaceitáveis. Concorda com António Costa quando ele afirma que há uma mesquinhez recorrente que põe em causa o futuro do projeto europeu?
Sim e não. Algumas das declarações - feitas também pelo ministro holandês, mas também por políticos de Portugal e da Itália - não foram úteis. O tom tornou-se muito duro e polarizado, e isso não ajuda. E o ministro holandês também reconheceu isso e lamentou a forma como iniciou o debate. Dito isto, acho que precisamos de levar as nossas posições, tanto no sul como no norte, um pouco mais a sério. Em ambos os sentidos. Então, acho que nós, no norte, precisamos de reconhecer e entender que, para um país que já tem uma dívida soberana muito alta, receber mais empréstimos dificilmente é uma solução. Isso apenas vai criar um fardo de dívida no futuro. Por outro lado, espero que também haja alguma compreensão da posição que você pode ouvir no norte. Que é: bem, não podemos carregar juntos um fardo de dívida extra para os contribuintes holandeses sem ter nenhum controlo ou sem dizer sobre como esse dinheiro é gasto e se é gasto da maneira certa, ou quando é que vai ser pago. Então, acho que ambas as posições têm algum mérito. Por isso, precisamos de encontrar uma forma de lidar com essas duas objeções. E, uma vez mais, se for feito num programa pela Comissão Europeia sob controlo do Parlamento, acho que é uma resposta muito sensata - e europeia - para um problema conjunto. Não acredito: algumas pessoas foram muito fortes sobre o que poderia acontecer com o futuro da União Europeia. Nisso sou um otimista. Durante a crise do euro, nos cinco anos em que presidi o Eurogrupo - durante esses cinco anos -, ouvi, dia após dia, pessoas a dizer "ah, isso vai terminar num desastre. O fim do euro está próximo, é um nado-morto, nunca será sustentável", etc., etc. Eu nunca acreditei nisso. Acredito que a zona euro tem muito mérito. Ter uma moeda única tem grandes vantagens. Mas há também algumas desvantagens que devemos reconhecer e para as quais nos devemos preparar. E temos de mostrar que estamos nisso juntos. Isso significa que há algumas consequências de se estar numa união monetária, e se tivermos de as enfrentar. E isso é verdade para todos os países, que precisam de ser um pouco mais realistas sobre o que realmente significa estar numa união monetária. Agora, se se fizer isso, não acredito que esses cenários muito sombrios do fim da União Europeia estejam próximos. Não penso que isso seja verdade. A UE é basicamente um porto seguro para todos nós, dá-nos proteção. E ainda nos permite ter um papel importante no mundo. Portugal já não pode desempenhar o papel mundial que costumava desempenhar no passado. A Holanda também não pode, por si só, desempenhar um papel significativo no mundo. Mas juntos na União Europeia podemos. E considero que o [nosso] interesse é muito, muito mais forte do que os aborrecimentos que às vezes sentimos entre nós.
Disse que o projeto europeu é um lugar seguro para se estar. Pensa que os britânicos ainda vão ver isso até ao final do ano?
Isso parece-me muito difícil de imaginar. O eleitorado britânico foi claro, nas últimas eleições, nas quais o atual Governo obteve uma vasta maioria. E essa é a realidade política que temos de aceitar. E, claro, não estou a dizer que é uma boa ideia. Penso que esta epidemia de coronavírus está a mostrar a importância de trabalharmos em conjunto, internacionalmente, além das fronteiras - o que, a propósito, não fizemos muito bem. Mas acho que a importância da cooperação internacional foi novamente comprovada. E entendo que os britânicos também entenderam isso. Esperamos que - se se retirar toda a retórica - possamos chegar a um acordo e a relacionamento futuro sensatos com o Reino Unido, e esperemos que esta crise do coronavírus sublinhe novamente que precisamos de manter bons relacionamentos. Mas não me parece que isso mude fundamentalmente o plano do Brexit.
Sobre outro tema. Os governos têm injetado milhares de milhões de euros nas companhias de aviação. Tanto quanto sei, não é a favor desta medida. Pode esclarecer melhor, uma vez que tem sido seguida por toda a Europa.
Em relação às companhias aéreas, não acho prudente financiar prejuízos - e, essas empresas estão a dar enormes prejuízos - e financiarmos as perdas dando-lhes empréstimos. Uma empresa que já está numa situação económica difícil, que caminha para um futuro incerto, não pode ser sobrecarregada com mais dívida. Portanto, o meu ponto é que, se se quer salvar essas empresas, se se deseja investir dinheiro para as manter vivas, deve-se solicitar património em troca e tornar-se um dos principais acionistas, o que também tem a grande vantagem. E é uma questão de princípio. Na Holanda - estamos a falar da Air France-KLM, que é a companhia aérea franco-holandesa - quase 70% dos acionistas desta empresa em particular são investidores privados. Não é correto que o contribuinte gaste milhares de milhões enquanto os atuais acionistas, investidores privados não participem e não assumam as perdas. Porque, uma vez mais, essas empresas estão a dar prejuízos enormes. Nunca se deve financiar perdas com mais dívidas, é uma estratégia muito arriscada. Portanto, se se deseja investir dinheiro lá, que seja investido em ações e património e não concedendo mais empréstimos, porque não é uma estratégia sustentável.
Refere-se apenas à Air France-KLM ou também a outras companhias aéreas na Europa?
Não conheço a situação das diferentes companhias. É claro que depende de quem são os acionistas, se já é ou não uma empresa pública. Na Alemanha, é claro, a Lufthansa está a receber, penso eu, um pacote de auxílio, entre ações e empréstimos. Então, talvez isso seja adequado para esse caso em particular. O meu único argumento é que, e acho que isso é verdade de um modo geral, financiar enormes perdas com novos grandes empréstimos é uma estratégia arriscada, pois pressupõe que a capacidade futura dessas empresas para ganhar mais dinheiro, para pagar e aliviar dívidas aumentaria no futuro. Não tenho certeza de que isso seja verdade para esse setor específico da economia. E se não é, então não lhes deem demasiados empréstimos, não lhes aumentem os níveis de dívida.
Outro tópico. O seu sucessor no Eurogrupo resignou ao cargo de ministro das Finanças e vai anunciar, nesta quinta-feira, que não é candidato a um novo mandato no Eurogrupo. Acompanhou a chegada dele ao Eurogrupo. Lembra-se como é que ele ultrapassou as desconfianças quando temiam que ele fosse um novo Varoufakis?
Não penso que alguma vez Mário Centeno tenha tido essa suspeita de ser um segundo Varoufakis. Mário Centeno foi desde o primeiro dia um colega muito sério, que assumiu os compromissos e a partilha de responsabilidade do Eurogrupo muito seriamente. Algumas pessoas disseram que ele ultrapassou os dogmas do Eurogrupo sobre a austeridade. Mas também não penso que isso seja verdade. Acompanhei a política orçamental de Centeno muito proximamente e ele manteve um orçamento muito restrito em Portugal, mas o seu papel no Eurogrupo foi sempre muito construtivo, muito sério, e, portanto, não pode comparar-se ao ex-ministro grego que você mencionou.
Disse que Centeno seguiu uma política restritiva em Portugal. Foi um ministro antiausteridade?
Na imprensa foi escrito algumas vezes que o novo Governo em Portugal adotou uma abordagem económica e orçamental completamente diferente na zona euro. Agora, eu assisti de perto, e simplesmente não acho que isso seja verdade. A política orçamental, também a do atual Governo, é muito sustentável, pois asseguraram que nunca acabariam num novo programa, que é uma abordagem política muito sólida. Portanto, não acho que seja fundamentalmente diferente. Com toda a justiça, o Governo anterior fez muito do trabalho difícil, nas reformas, ao erguer o Orçamento novamente, de forma sustentável. Assim, o antigo Governo português fez muito do trabalho difícil. E, as contas atuais do Governo são nessa base. Portanto, não acho que tenham sido uma mudança radical. E, certamente, não tão radicais quanto o senhor Varoufakis tinha proposto para a Grécia. Agora todos sabemos como isso funcionou durante 2015. Não foi uma receita muito bem-sucedida. E, felizmente, a Grécia também se afastou disso.
Recentemente, o jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung tinha apontado a possibilidade de Centeno resignar no Eurogrupo. E citou fontes anónimas que o criticaram muito em relação à forma como ele conduz as reuniões dos ministros. Acompanhou o trabalho dele, deu uma boa continuidade às funções?
Não posso comentar. Já não faço parte do Eurogrupo. Mário Centeno foi eleito - no final, por unanimidade - pelo Eurogrupo. E é um trabalho difícil. Foi um trabalho difícil no meu tempo, que foi período de crise. Algumas pessoas dizem que é ainda mais difícil administrar um grupo como o Eurogrupo se não houver crise. Durante os anos de crise, é claro, houve uma enorme urgência, precisávamos de agir, construir uma união bancária. Tínhamos de configurar o Mecanismo de Estabilidade Europeia, tínhamos de projetar e negociar programas com diferentes países, e isso cria uma janela de oportunidade também, mas também muita urgência. Tinha de ser feito. E, em alguns aspetos, é ainda mais difícil gerir um órgão complexo como o Eurogrupo num período em que esse sentido de urgência não é forte. Nos últimos anos - até à chegada do coronavírus -, havia, infelizmente, muito pouca urgência entre os ministros para avançar, para concluírem a união bancária, para criarem novos instrumentos e novos fundos para a zona euro. Também tem sido um período com as suas complexidades específicas.
Esperava que Centeno tivesse conseguido mais, por exemplo, em relação à união bancária e à forma como conduziu essas negociações?
Não. Eu esperava mais da união bancária, porque acho que deve ser concluída urgentemente. E, como você sabe, ainda falta uma parte, que é o sistema europeu de seguro de depósitos, que seria muito importante para aumentar a confiança dos depositantes e dos investidores nos bancos europeus. Então penso que também tentei chegar a um acordo com alguma componente de compromisso, claro, neste projeto, o EDIS. Não fui capaz de o concluir - e ainda hoje não foi concluído. Isso não se deve ao presidente do Eurogrupo, deve-se à falta de urgência que alguns ministros demonstraram. E acho que é um erro. Deveria haver mais urgência nesse tópico. Ainda estamos muito dependentes de bancos na Europa, o que lamento. Gostaria que tivéssemos mercados de capital, em vez de apenas financiamento bancário. Mas ainda estamos muito bancodependentes. É importante que os nossos bancos sejam fiáveis, sejam vitais, possam trabalhar além-fronteiras. E tudo isso ainda depende do sistema europeu de seguro de depósitos, que seria realmente necessário.
Agora é o presidente da Agência Holandesa de Segurança. No contexto do coronavírus, esperam algumas disrupções quanto à segurança?
Como você deve saber, o Governo holandês pediu-nos a avaliação de toda a crise do coronavírus na Holanda. Então, vamos analisar as diferentes fases desta epidemia, que temos aqui e no mundo todo. Vamos olhar para a fase, digamos, do tempo de paz, em que ainda não tínhamos o vírus, mas deveríamos, ou poderíamos, ter-nos preparado para a pandemia, e então ver como nos deveríamos ter preparado. A segunda coisa é, obviamente, o que aconteceu no período em que a pandemia já estava na China, mas ainda não na Europa. Nós agimos? Preparámo-nos? A terceira fase é a atual fase da pandemia, na Europa e nos Países Baixos. Que decisões foram tomadas, em que base, como funcionaram e como agiram outros países? Então veremos como poderemos estar mais bem preparados no futuro. Como gerir o estado atual, em que ainda não temos uma vacina e a epidemia parece estar a diminuir? Como lidar com isto? Todos esses aspetos que estamos a analisar serão um projeto importante que vai demorar, presumo, mais de um ano, mas é o trabalho típico que o Conselho de Segurança dos Países Baixos faz. É uma instituição com um nome muito forte nos Países Baixos. Somos chamados sempre que há grandes crises ou grandes acidentes ou desastres. Somos chamados para investigar e apresentar recomendações para o futuro. E é exatamente isso que faremos em relação ao coronavírus.
A experiência que adquiriu na gestão das crises do Eurogrupo deu-lhe habilitações para liderar uma agência de avaliação de grandes incidentes?
Ora, há certamente uma linha vermelha, e isso que tem que ver com a forma de se lidar com crises. Sim, pode-se dizer que algumas das experiências que tive durante os anos do Eurogrupo podem ser úteis no Conselho de Segurança dos Países Baixos.
Não sente falta das reuniões do Eurogrupo, da política e da política europeia?
Não sei.. realmente gosto do trabalho que faço agora. E a pergunta para mim sempre será: estás a acrescentar valor? Acho que se pode realmente acrescentar valor no trabalho em que se está, no local em que se está no momento. Eu tive a oportunidade de ser ministro das Finanças nos Países Baixos e presidente do Eurogrupo num momento muito difícil e desafiador. E essa foi uma grande oportunidade. Acredito que posso trazer grande valor no Conselho de Segurança dos Países Baixos, porque há muitas lições a aprender sobre a forma como lidamos com esta pandemia, sem precedentes. Como me disse no início da entrevista, está para lá de tudo o que experimentámos antes, também nos efeitos económicos.
Uma última pergunta: já fez as pazes com os países do sul?
Curiosamente, estive na Grécia três ou quatro vezes desde que deixei o cargo no Eurogrupo, porque quero continuar ligado, quero ver e conversar com as pessoas, ver o que está a acontecer, e as minhas relações com a Grécia e o povo grego são realmente muito boas. Tenho muitos amigos lá agora e permaneço em contacto com eles. E espero que isso também se torne realidade para Portugal no futuro, que continuemos a nossa conversa. Temos apenas uma União Europeia e apenas um euro, e precisamos de torná-lo um sucesso conjunto. E é aí que está o meu compromisso.
Espera fazer essa visita em breve, quando as fronteiras estiverem reabertas?
Não acho que isso seja a muito curto prazo. Os meus planos de férias, alguns dos quais estavam dirigidos para o sul da Europa, foram adiados. Mas espero que no próximo ano voltemos aos trilhos novamente.