Não, o Sócrates e o Salgado não beneficiariam do RBI!
O tema do Rendimento Básico Incondicional inundou a pré-campanha das legislativas, causando celeuma quer à esquerda, quer direita. Sucintamente, o RBI trata-se de um rendimento pago a todos, em prestações regulares, independentemente da condição laboral, nível de riqueza, agregado, familiar, etc.
No debate com Rui Tavares, André Ventura vociferou a sua indignação contra a medida. Parafraseando Ventura, se todos recebem, sem qualquer contrapartida, então também José Sócrates e Ricardo Salgado beneficiariam de um RBI. Ventura aludiu, como sempre faz, ao carácter moral/criminal destes putativos beneficiários, de modo a decretar a sua ilegitimidade no acesso a este benefício. No entanto, poder-se-ia formular uma objeção apelando não à moralidade, mas à justiça social. É justo que estejamos a pagar incondicionalmente a mesma quantia a todos, quer estes precisem ou não, como Sócrates e Salgado, em contraste com o RSI? Como é que o RBI permite combater as desigualdades, se aos mais ricos estamos a atribuir o mesmo montante que aos mais pobres? Além do mais, por mais pífio que seja o valor do RBI, afigura-se incomportável para as finanças públicas quando multiplicado por toda a população, conforme atestam as simulações feitas por alguns dirigentes do BE.
Ambas as objeções padecem do mesmo mal. Este diz respeito a uma interpretação errónea do conceito de "incondicionalidade" que subjaz à medida. Tal leva a confundir "todos recebem" com "todos beneficiam". Num modelo de RBI de esquerda, essa equivalência não existe. Pensemos no seguinte cenário hipotético. Um RBI de esquerda foi implementado na Sociedade X. Por conseguinte no tempo1 (t1) todas as pessoas receberam o seu RBI, vamos supor 400 euros. Ao verificaram o saldo dos seus respetivos cartões, cada pessoa pôde constatar um acréscimo desse valor na sua conta. Na hora de pagarem os seus impostos para financiarem a medida, no entanto, à Maria, que não dispõe de mais nenhum rendimento além do que lhe é concedido pelo RBI, não é exigido qualquer custo. Por outro lado, aos banqueiros, como o Salgado, que auferem rendimentos avultados, é-lhes exigido um pagamento bem acima dos 400 euros. Assim sendo, Sócrates e Salgado, ao contrário da Maria, não seriam beneficiários líquidos da medida. Pagariam em t2 mais do que receberiam em t1. Num modelo de esquerda, o custo do RBI consiste na diferença entre o que todos recebem no t1, e aquilo que é exigido que paguem em impostos em t2. Logo, não faz sentido, como têm feito alguns dirigentes do BE, apenas olhar para t1.
À medida que os rendimentos, à parte do RBI, sobem, o benefício líquido, neste caso dos 400 euros, vai decrescendo gradualmente, até 0 quando chega a determinado patamar elevado. O grande desafio político está em escolher os alvos, a progressividade, e a logística administrativa certos. O que certamente suscitará receios, dúvidas e divergências legítimas. É, porém, neste campo que o RBI deve ser discutido.
Mas se nem todos são beneficiários líquidos, qual é o interesse do RBI?
Embora nem todos sejam, a todo o momento, "beneficiários líquidos", são, no entanto, "beneficiários latentes" e isso fará diferença na vida de muitas pessoas. Alguém que hoje tenha um emprego, com um salário que dispensa a necessidade de um RBI, ganha maior poder para negociar os termos de cooperação com o seu patrão, ao saber que aconteça o que acontecer, quer se despeça, ou seja despedido, no dia de amanhã não ficará totalmente desprovido em termos materiais. Uma vítima de violência doméstica, mas presa na dependência financeira do cônjuge, ganha com o RBI uma via de saída da relação. Para um jovem talentoso, perante um dilema entre um emprego seguro, mas que não o realiza, e o horizonte de uma carreira que sonha, mas é incerta, o RBI constituirá uma almofada contra os riscos mais severos.
Na pior das hipóteses o RBI tem pelo menos um mérito. O de nos revelar as vantagens de aliviar a condicionalidade do acesso a rendimento, no que diz respeito ao combate à pobreza, à desigualdade, ao desequilíbrio negocial no trabalho, e à imobilidade social. Posto isto, mesmo que o RBI nunca venha a ser implementado, que sirva de mote para reformarmos as outras medidas já existentes, de modo a reproduzirmos, pelo menos parcialmente, alguns dos seus expectáveis efeitos.
Investigador no Centro de Ética, Política e Sociedade (CEPS) da Universidade do Minho