Não metamorfoseemos a pátria num paúl
Na semana que passou levei em pleno debate plenário com o Governo um puxão de orelhas por parte do Primeiro-ministro, que me aconselhou a vacinar-me depressa contra "o vírus do populismo" que "se transmite pela linguagem" por ter proferido a seguinte frase: "para evitarmos que o país se transforme num lamaçal -- num charco cada vez mais pequeno -- temos todos um papel a desempenhar: parlamento, governo, comunicação social, sistema judicial -- todos".
Da acusação de populismo não me cabe a mim responder; os leitores decidirão se a carapuça me serve ou não. Quanto ao uso da linguagem, resta-me alegar que eu não usei as palavras "lamaçal" e "charco" para descrever a realidade existente mas simplesmente para definir aquilo em que não quero -- e acredito que a grande maioria de nós não quer -- que Portugal se torne.
Ainda assim, para me proteger, ainda poderei seguir o conselho que um deputado do PS me deu nos corredores: "devias ter usado palavras mais caras...". Daí o título parnasiano que adorna esta crónica.
O fundo da questão, contudo, permanece. A possibilidade de o país se atascar num lodaçal (será que esta formulação já passa o teste do populistómetro?) não é remota, nem é pequena. Ela está à nossa volta, todos os dias, nas instituições, nos media, nas redes e nas ruas. As democracias decaem por vezes -- é dos livros -- e quando o fazem o processo é parecido com a descrição que Hemingway fez de como foi à bancarrota: "primeiro muito devagarinho, depois muito depressa". A história de Portugal também é feita desse colapso, tanto no fim da Monarquia como no fim da Primeira República. E quer cada cidadão que leva a peito uma das mais belas revoluções democráticas do mundo -- senão a mais bela -- que é o nosso 25 de Abril de 1974, que cheguemos aos seus cinquenta anos com orgulho do que conseguimos em conjunto, e que depois venham mais cinquenta.
Para tal, cada um de nós tem um papel a desempenhar. Não é sequer um papel muito difícil. É não contribuir para aviltamento da democracia e não ajudar os adversários dela.
A nossa atual crise de representação é feita de duas crises diferentes. Uma delas tem origem no governo e já extravasou para outras instituições, em particular para um braço-de-ferro com Belém e um rolo compressor aplicado a São Bento/Parlamento. Quem alertou contra a possibilidade de uma maioria absoluta - como o LIVRE fez nas eleições de 2022 -- era contra isto que alertava. Quem se defendeu dizendo que governar com maioria absoluta iria ser o mesmo que governar sem maioria absoluta está agora a falhar à promessa.
Esta crise é a mais fácil de resolver: precisa de uma remodelação mais de práticas do que de nomes. Precisa que os ministérios venham ao parlamento nos estágios iniciais de concepção das suas propostas. Que cada ministro ou ministra nomeie uma pessoa para ponto de contacto com os grupos parlamentares. Precisa, finalmente, que o governo liberte o grupo parlamentar que o apoia para votar nas propostas da oposição de acordo com o mérito de cada uma -- algo que o primeiro-ministro disse que já era o caso mas em que ninguém acredita, porque ninguém pode acreditar que mais de 95% das propostas sejam tão más que não possam sequer passar à fase de especialidade.
A segunda crise é muito mais complicada de resolver. Trata-se da crise que é aberta pelo adversários da democracia - na prática, a extrema-direita parlamentar -- com a sua política feita de insultos e discurso de ódio. Para a podermos derrotar cabalmente, importa que os democratas dêem o melhor de si a preservar a democracia, para que disso resulte uma democracia capaz de se defender a si mesma. Não se combate o pantanal esbracejando, mas elevando-nos.
Deputado e co-porta-voz do LIVRE