"Não há medicina sem humanismo"

Nos últimos anos a medicina mudou. Surgiram os seguros, deixou de haver uma classe médica, os médicos passaram a trabalhadores de saúde, foi imposta uma duração para as consultas... Para Joshua Ruah e Mário Andrea o problema é que os dirigentes não percebem que a produtividade da medicina é a qualidade da mesma. E isso não se mede pelo número de consultas dadas num dia.
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A medicina mudou e muito. E não para melhor (no geral). Esta é a opinião dos dois palestrantes da terceira tertúlia Medicina e Humanismo, organizada por Luís Machado, com consultoria científica de Luís Nave e realizada no restaurante As Velhas, em Lisboa. Hoje há uma enorme pressão sobre os médicos. Onde antes a faculdade dava conhecimento e o hospital ensinava a ser médico, hoje as unidades hospitalares demitiram-se dessa função. Essa é a opinião de Joshua Ruah que acrescenta que um dos grandes problemas prende-se com terem acabado com as carreiras. Hoje já não há concursos públicos em que os candidatos prestavam provas e onde quem chegava ao topo tinha de trabalhar muito. Hoje os cargos são dados por ligações de confiança com os dirigentes.

A mudança na medicina começou, provavelmente, por volta de 1997, altura em que surgiram os primeiros seguros de saúde. Uma ação que "foi boa para as pessoas, mas péssima para os médicos, porque não distingue qualidade", afirmou o urologista, que acrescentou que, como consequência, passou a haver uma uniformidade por baixo.

E todas estas mudanças também se refletem na formação. A partir do momento em que a forma de acesso aos cursos de medicina passou as ser as notas, a vocação passou para segundo plano. E nem sempre um aluno com as melhores notas se transforma num bom médico.

"A vocação foi amputada desde o início", constata Mário Andrea que acrescenta que hoje uma pessoa entra em medicina sem saber que especialidade vai tirar. Porque as regras não são claras desde o início. Não são comunicados os números de vagas que irão abrir nem quando. E, como consequência "a quantidade de médicos (portugueses) a trabalhar no estrangeiro é brutal". O otorrinolaringologista defende que "as pessoas deviam saber as regras (para as especialidades) e o que têm de fazer para lá chegar".

Mas essa não é a única diferença notada pelos dois médicos. Ambos referem que "no seu tempo" havia uma maior interação entre médico e paciente e mesmo entre médicos. Meio a brincar referem que "no seu tempo" falavam entre eles de temas culturais e que hoje, quando há tempo, se fala de carros e férias. Não é por acaso que Joshua Ruah defende que na faculdade deveria haver uma cadeia sobre pensamento filosófico. Porque não há medicina sem humanismo. E "os médicos têm de aprender a usar uma linguagem que sirva para todos e aprender a ouvir uma língua que pode ser diferente da sua", aponta Joshua Ruah, que relembra a célebre frase de Abel Salazar "o médico que só sabe medicina nem de medicina sabe".

Quer Mário Andrea quer Joshua Ruah falaram do prazer que era interagir com os pacientes. Garantem que aprendiam sempre alguma coisa sempre que os ouviam. E que hoje, já não estando no Serviço Nacional de Saúde, é disso que mais falta sentem: "O prazer de estar com os doentes."

Algo que hoje, em que impera a cultura da produtividade, em que se contabiliza o número de consultas feitas num dia, e em que se limita o número de minutos por consulta, é difícil de praticar. "Em consultas de 15 minutos não dá para falar com ninguém", refere Mário Andrea. E isso é preocupante porque, como explica Joshua Ruah, "a nossa relação com o doente é essencialmente uma relação humanizada". Mas, para isso, o médico tem de saber e ter tempo para ouvir o paciente. O que, nos dias de hoje, é algo extremamente difícil.

Para alguns doentes a culpa é da tecnologia. Os médicos não os ouvem, não os auscultam, passam o tempo todo ao computador. Mas a tecnologia não é necessariamente má. Como lembra Joshua Ruah hoje o médico tem toda a informação praticamente à distância de um clique. Consegue obter o historial do paciente e ter mais dados. A questão prende-se com a utilização que se dá a essa tecnologia. Mário Andrea tem a solução ideal. No seu consultório não há sequer um computador. Quando necessita de ver algum exame específico ou examinar algum detalhe vai com o paciente para outra sala onde estão os equipamentos necessários. Quanto à informação da consulta (ou da ficha) deixa isso para a assistente. A ele calhe-lhe a tarefa de examinar e tratar do paciente. E só. Porque é tempo de se perceber que produtividade na medicina não são minutos ou consultas efetivadas, mas sim a qualidade das mesmas. Os pacientes são pessoas e não números.

dnot@dn.pt

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