Não faltam promessas de muita bengalada na cultura nacional

A polémica sai do Facebook para a rua. Uma coisa destas inspiraria um novo capítulo de Os Maias ou um romance de Camilo
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Parece que estamos a viver numa galáxia distante em que os duelos são moda. É assim em todos os sete episódios da saga Guerra da Estrelas, com a agravante de o primeiro desafio ser entre pai e filho. Mas a galáxia é próxima, fica localizada no eixo Ajuda-Belém e envolve o ministro João Soares e algumas figuras que vivem no sóbrio planeta que é a cultura nacional. Onde já se percebeu que João Soares reforma a ordem estabelecida conforme o seu plano e não admite rebelião como nos filmes de George Lucas.

Nada que um volte-face próprio do cinema não altere o argumento: a promessa de um par de bofetadas. Foi assim em Portugal nesta semana, como que a fazer reviver os clássicos da literatura nacional. Em que Eça de Queiroz, que não sujava as mão na "choldra nacional", só respondia às provocações com escritos, punha em Os Maias uns bons duelos ou a promessa de umas boas bengaladas. Foi assim quando Genoveva quis humilhar Dâmaso Salcede e recorda como um conhecido se pôs a gritar pela polícia mal sentiu o pau a chegar-lhe à roupa. O jantar ficou logo estragado e, enquanto João da Maia e Vítor evocavam lembranças de bons duelos, o Bordéus aquecia e o salmis de perdiz arrefecia.

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Outro ponto alto das disputas culturais acontece entre Antero de Quental e Ramalho Ortigão, devido a umas palavras poucas simpáticas de Feliciano de Castilho. Ortigão quis lavar a honra do seu mestre perante as críticas e desafia Antero. Ficou ferido num braço, mas reconciliam-se pouco tempo depois.
Já Camilo Castelo Branco era mais colérico e menos brando, prometendo maus-tratos ao marido da amante, Ana Plácido. Ou a outro marido, o da princesa Ratazzi, que enxovalhou a imagem de Portugal num dos mais cruéis relatos de viagem. Entre as maldades da princesa estavam ainda críticas nada suaves à obra do escritor, o que o levou a desafiar o marido de Ratazzi para um duelo. Na enorme pilha de romances que escreveu não faltam também acertos de contas, duelos, bengaladas e bofetadas. No entanto, o último duelo foi consigo mesmo e fatal. Suicida-se com um tiro.

Aliás, balas não faltam entre escritores. Designadamente entre os mais sensíveis: os russos. O destaque vai para Pushkin, que não aprecia o que o militar francês Georges d"Anthès disse sobre a sua mulher e acabam em duelo, tendo morrido com um tiro certeiro no peito. Outro russo, Lermontov, ficou tão impressionado com a situação que lhe fez um poema e acabou por o imitar, tendo também morrido num duelo.

Mais perto de Portugal, também importantes escritores gostaram de desafiar a morte em disputas para o qual só em ficção estavam preparados. Miguel de Cervantes, em 1569, feriu o oponente e teve que fugir. Victor Hugo irritou-se com o modo de um militar lhe tirar um papel da mão e desafiou-o em 1821, ficando ferido numa das mãos. Igual sorte teve o escritor francês Sainte-Beuve, que era amante da mulher de Hugo, quando desafiou um diretor de jornal. Também Alexandre Dumas pegou na pistola em 1832, tal como Proust em 1897 convocou um crítico literário para restaurar a sua honra.

Se o modo de desafiar os críticos na literatura e na vida era com o vergastar nem sempre suave do rosto do oponente com uma luva, o gesto de João Soares não foge ao habitual convite ao duelo. Prometer bofetadas e dar umas bengaladas sempre serviram ao gosto português da classe média e do meio da cultura. Resolver a questão com a enxada ou com a caçadeira não é habitual em gente culta! Mesmo na mais recente polémica no mundo cultural português, a do ensaio de Henrique Raposo sobre o Alentejo, a arma utilizada foi o fogo para queimar um par de exemplares da obra provocatória. No final, o duelo acabou com uma cantoria alentejana em vez de um par de bofetadas. Dessa vez, tal como na de João Soares, o grande palco de acerto de contas foi o Facebook. Que, sendo virtual, não é preciso escolher armas. Basta a tradicional maledicência.

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