Não estamos a salvar a Terra, estamos a salvar-nos a nós

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Talvez a figura mais empolgante da WebSummit tenha sido Christiana Figueres, a costa-riquenha de 63 anos que desempenhou o papel de Secretária Executiva do "Acordo de Paris", em 2016. Ela disse a frase que está no título deste texto e representa uma boa síntese sobre o essencial do que estamos a viver. O planeta continuará. Talvez sem a espécie humana ou, pelo menos a curto prazo, sem a vida extraordinária que atingimos no século XXI. O problema é nosso. Por essa razão, temos mesmo de mudar de vida e ainda vamos a tempo.

Christiana reforçou um ponto extremamente importante: diminuir a desigualdade e a pobreza é uma das tarefas mais importantes para descarbonizar a sociedade. Por exemplo, se em dez anos fosse possível dar eletricidade a milhões e milhões de pessoas que nunca a tiveram em casa, pouparíamos imenso carbono. Como? Através do vento e da energia do Sol para cozinharem e aquecerem-se, substituiriam a lenha e o carvão. Eis um exemplo de como menos carbono pode significar melhor qualidade de vida.

Outro caso, este com mais tecnologia disruptiva: a Lilium Aviation é uma empresa que vai colocar no mercado, em 2025, aviões ultra-leves, elétricos, de cinco lugares, mais baratos que carros elétricos. Serão capazes de aterrar num qualquer espaço como um "pequeno heliporto" ou terraço de um prédio (e sem barulho), e terão uma autonomia numa primeira fase de 300 quilómetros.

Um dos seus fundadores, Daniel Wiegand, lembrava que andar pelo ar é muito melhor e mais rápido que pelo chão. Com estas vantagens: conseguiremos gradualmente evitar que se extraiam 700 mil milhões de barris de petróleo por ano; pouparemos 1,5 triliões de dólares (1,5 biliões de euros) em construção e reparação de estradas pelo mundo. E não continuaremos a fazer entrar no mercado 100 milhões de carros novos alimentados a energias fósseis todos os anos.

Outra boa notícia foi trazida por Ronan Dunne, vice-presidente da norte-americana das telecomunicações, Verizon, uma das empresas que está a lutar pela liderança da tecnologia 5G. Segundo ele, esta nova tecnologia gasta 10 vezes menos energia para ser distribuída que a atual 4G, além dos avanços de produtividade que vai permitir na economia.

Poderia continuar com outros exemplos. O que a WebSummit demonstrou é que quase toda a inovação tem em conta, cada vez mais, a pegada ecológica e a noção de que as pessoas/consumidores não estão indiferentes ao sofrimento que as alterações climáticas trazem. Christiana Figueres relembrou, aliás, que é possível reverter este processo se todos reduzíssemos a nossa pegada ecológica a 50% até 2030.

Para isso acontecer é preciso mudar o presidente dos Estados Unidos - foi dito ao longo dos três dias em vários palcos - mas até nesse ponto Christiana Figueres não desarmou: "Ele não ficará para sempre na Casa Branca". Há muitas empresas, muitos Estados e muitos cidadãos a alterar comportamentos, acrescentou.

Ainda assim, a Administração norte-americana avisou na segunda-feira que sai do Acordo de Paris face aos "intoleráveis encargos" que ele acarretaria. O que dirão então... os pobres indianos? E brasileiros? E indonésios? E... californianos?, esmagados pelas centenas de incêndios (em Novembro!), além da dramática falta de água.

Simultaneamente, o alerta de 11 mil cientistas de 153 países (!) sobre a "emergência climática" merecia um estremecimento. Mas ele ainda não aconteceu, generalizadamente, a nível global.

Ainda na semana passada a CNN mostrou um novo estudo sobre a mancha de áreas inundadas em muitas grandes cidades do mundo. Conclusão: será afinal maior que as previsões anteriores. Os mapas projetam as consequências mais dramáticas para 2050, o que significa que o processo está já a tornar-se irreversível e a desencadear-se a partir desta próxima década. Milhões de desalojados, biliões de prejuízos. Ainda evitáveis.

Entretanto no Brasil, foi assassinado um líder indígena e Guardião da Floresta, Paulino Guajajara, reflexo de mais um triunfo do poder descontrolado dos que estão a sacar toda a madeira possível, numa Amazónia desprotegida por Bolsonaro.

Enquanto isso, em mais um exemplo de abissal estupidez, a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos abrandou as regras de defesa dos rios, alargando os níveis de lançamento das escórias de carvão nos cursos de água. Ou seja, mais arsénio, chumbo e outros contaminantes. Para quê? Para tornar mais rentável a exploração do carvão? Ou para matar mais americanos? Resposta difícil.

Para se compreender quão importante é o desafio, acrescente-se este ponto de um debates da WebSummit: "A economia dos Estados Unidos e da China, juntas, são maiores que todas as outras economias do mundo combinadas", afirmou Michael Pillsbury, o principal conselheiro e negociador de Trump na guerra comercial com a China. Confirmou, aliás, que o principal sonho de Trump é concretizar o G2 - USA/China.

Se os dois maiores poluidores do mundo ficassem fora de um plano para nos salvarmos das alterações climáticas, a nossa missão coletiva seria quase impossível. Felizmente, a esperança é a última a morrer. Esta semana Trump perdeu um bastião republicano - o Kentucky - para os Democratas, com uma nuance interessante: antes dele ir lá apoiar o seu candidato, a luta estava renhida. Depois dele, os Democratas aumentaram a distância nas sondagens e venceram.

Talvez a 3 de Novembro de 2020 possamos a estar a ver um filme menos negro. Os Republicanos também respiram e bebem água.

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