"Não espero, nem desejo, que o OE de 2022 seja reprovado"
Marcelo Nuno Duarte Rebelo de Sousa nasceu em Lisboa, tem 72 anos, é licenciado em Direito com doutoramento em Ciências Jurídico-Políticas. Foi professor universitário, jornalista, comentador e, na política, deputado, secretário de Estado, ministro e líder do PSD. É o atual PR, concorrendo a um segundo mandato.
O Estado falhou na preparação da segunda vaga da pandemia, nomeadamente nas medidas que foram adotadas para o Natal?
Como tive ocasião de dizer numa entrevista à RTP, num momento particularmente relevante - o dia em que ouvi os partidos para uma renovação do estado de emergência -, houve uma realidade que concentrou as atenções nos meses de junho, julho e agosto dos decisores sanitários e dos decisores políticos, a da Grande Lisboa que, de repente apareceu em toda a sua expressão: os números no norte e no centro caíram e ficou Lisboa num planalto muito elevado que depois subiu. Isso concentrou a atenção e, de alguma maneira, levou a pensar que havia ali uma prioridade que foi atacada com confinamento específico e havia a esperança de que a segunda vaga viesse entre o outono e o inverno. Ora a segunda vaga veio entre o verão e o outono, portanto, setembro/outubro, muito antes do que se pensava, e a concentração de atenções na Grande Lisboa desfocou a antevisão quanto à segunda vaga. Eu na altura disse que é um facto, é um erro que temos de admitir e que eu assumo com a máxima expressão, não termos tido a perceção de que podia ser mais cedo do que mais tarde, embora isso tenha acontecido também um pouco por toda a Europa. Mas não é desculpa para não termos tido uma perceção mais rápida e podido não só antever, como antecipar medidas tomadas quando se passou do caso de Lisboa para o país com a divisão em várias categorias de municípios; mas isso já foi com um mês e meio de atraso.
No caso do Natal, teria agido de outro modo?
Havia uma generalizada opinião, por exemplo dos partidos políticos, que queriam, até vários deles - mais em atenção à situação económica e social, em relação à situação da restauração -, mais abertura. Achavam que as pessoas estavam exaustas, muito cansadas e precisavam de uma abertura - responsável, controlada, mas abertura. Eu usei até uma expressão que era um "contrato de confiança" com os portugueses, que eles deviam moderar-se. Sabendo que se significasse uma subida teria consequências muito pesadas em termos restritivos. Nessa fase entendeu-se que era bom fechar o fim do ano. O facto é que quase inevitavelmente as famílias foram para grandes reuniões, com circulação por todo o país, e isto teve a consequência que começa a ver-se e que significa números a saltar dos 4000, 5000 para 10 000 ou mais e com uma pressão muito intensa sobre os internamentos e os cuidados intensivos. Isto com uma diversidade grande em termos de idades - se nos mortos o peso é impressionante daqueles que estão acima dos 80 anos, em termos percentuais há um número de casos muito significativo entre os 20 e os 29 anos, e há casos de internamentos nos 40 a 60.
Estamos provavelmente perante novo confinamento como o de março, com a exceção das escolas. Não teria sido melhor iniciar o período com aulas à distância?
O segundo período foi iniciado ainda com base em números contidos. Já se aprendeu que é preciso ir fazendo ajustamentos à medida que a situação muda. Ninguém sabia da variante britânica, ninguém sabia que chegava à Europa continental tão depressa, ninguém tinha a noção exata do prazo de contágio. Os especialistas foram afinando, os decisores políticos também. Eu recordo as primeiras sessões com epidemiologistas, e o que foi dito lá e foi sendo dito ao longo do tempo. Daí que se tenha tido de recorrer, por exemplo, a esta situação nitidamente intercalar que foi a renovação por oito dias. As pessoas querem certeza, querem planear a vida, mas têm de compreender que, muitas vezes, isso não é possível porque há de facto mudanças e relativamente rápidas que obrigam a correções rápidas.
Justamente por ser tão volátil, não recomendaria maior cautela?
Por isso é que, permanentemente, se recomenda aos portugueses a maior cautela possível, sobretudo desde que ficou claro com a chamada segunda vaga que aquilo não era uma realidade de poucos meses - esperemos que não seja mais de um ano, mas pode sê-lo porque começou entre nós em março e parece razoável olhar para um horizonte mais vasto. Por isso é que eu tive sempre muito cuidado com o anúncio de expectativas na vacinação. As pessoas tinham de ter a noção de que são milhões para vacinar e não é possível vacinar milhões ou centenas de milhares ao ritmo que entrou na cabeça das pessoas como sendo óbvio.
Acredita que os portugueses vão sentir-se seguros nas presidenciais, para sair de casa e votar?
Se for aprovado o confinamento com este número muito elevado de casos e de internamentos, de cuidados intensivos, de mortos, será muito muito, muito rigoroso. Mas no dia da votação haverá desconfinamento para se poder votar.
Estarão autorizados a sair, mas sentir-se-ão seguros?
Coloquei essa questão aos partidos políticos na altura devida. Foi uma das razões por que esperei pela aprovação no Parlamento, a promulgação e a entrada em vigor da lei que previa o voto em condições domiciliárias dos isolados profilaticamente e que alargava o voto antecipado. Foi por isso também que esperei para ver se perante a segunda vaga entendiam, partidos e candidatos, que devia haver adiamento, e a opinião foi unânime: não. Tinha havido eleições nos Açores, nos EUA... e isso passava por decisões dos partidos, não do Presidente, porque só os partidos poderiam rever a Constituição para adiar de forma significativa a data das eleições. Foi na base dessa opinião que convoquei as eleições para aquele prazo que decorria também da Constituição. Agora há quem apareça a dizer que é possível uma revisão constitucional instantânea para, eventualmente, adiar. Bom, é uma decisão de partidos, não é uma decisão de Presidente. É mais complicado agora: adiar para quando? Indefinidamente?
Uma coisa é adiar as eleições, outra coisa é a revisão constitucional urgente no sentido de, como defendem certos constitucionalistas, podermos ter a votação repartida por sábado e domingo ou no domingo ser estendida até mais tarde. Subscreve esta ideia?
O Presidente tem de ter muito cuidado naquilo que é o exercício da competência dos deputados. Se há domínio em que o Presidente não tem, de facto, competência - nenhuma, é obrigado a promulgar o que os deputados votarem - é o da revisão constitucional.
Esta entrevista é ao candidato. Certamente não gostará de ver uma grande abstenção no dia 24.
Eu sou permanentemente PR. E como Presidente o que posso dizer é o seguinte: fui contactado, por exemplo, pela senhora presidente da APRe! que me colocou o problema dos idosos em lares, aliás de todos os utentes dos lares das mais variadas idades, e também daqueles que lá estão a trabalhar no dia da votação. Sei que essa mesma preocupação já foi expressa por vários observadores, comentadores e analistas, e, aí sim, o Presidente pode ter competência. Eu estou a envidar esforços para ver se é possível avançar para um alargamento do conceito de isolamento profilático para cobrir aquilo a situação dos que estão nos lares. Aí há vários caminhos que podem ser explorados juridicamente. Um é essa interpretação ser feita pelas autoridades sanitárias e portanto, ao alargar poder aplicar-se o regime dos isolados profilaticamente. Se se entender que isso não chega, pode-se ponderar um alargamento interpretativo por via legal. Outra hipótese, se se entender adequado, é no decreto presidencial de renovação do estado de emergência - no próximo que ainda é anterior ao exercício do direito de voto - haver uma inserção específica desse alargamento. Mas isso tem de ser coordenado com a máquina eleitoral, com a Comissão Nacional de Eleições (CNE) e o Ministério da Administração Interna (MAI), porque aí a questão que se põe é saber se o exercício do direito de voto não deveria ser antecipado. Para isso, quanto mais rapidamente se fizesse esse alargamento interpretativo, melhor, para evitar uma solução que vá a tempo das eleições, mas não do voto antecipado. É preciso ver se há capacidade de mobilizar o cidadão para essa tarefa, que é uma tarefa cívica fundamental, de deslocação aos isolados para recolha dos votos que têm de ter um período de quarentena, embora curto. Eu admito que seja uma sobrecarga na máquina, mas também percebo a posição daqueles que, nos lares, perante esta situação agravada, dificilmente têm condições psicológicas ou sanitárias, para se deslocarem e votarem.
Essa medida poderia ajudar a reduzir a abstenção. Considera que o governo tudo está a fazer para conseguir reduzir levar o voto a quem está nesse confinamento?
Sim, eu penso que a CNE e o MAI têm feito tudo o que é necessário, até ao ponto de, preocupados com a impressão do boletim de voto, até ter havido uma aceleração do processo de impressão que motivou que tivesse avançado antes mesmo de o Tribunal Constitucional dispor do tempo para apurar do preenchimento dos requisitos das candidaturas. Há uma preocupação de, num momento muito difícil, ter uma máquina eleitoral que responda. Mas neste momento não é fácil, admito, às próprias candidaturas mobilizarem delegados para as secções de voto, pois as secções de voto aumentaram o seu número devido ao distanciamento. Tudo isto é uma situação nunca vivida no nosso país - foi vivida nos Açores, mas aí não se refletiu na abstenção. Agora vai ser vivida numa situação mais grave, mais gravosa e, portanto, mais difícil.
O Orçamento do Estado para este ano foi o mais difícil aprovar...
Não, não foi. Já houve um mais difícil em que tudo somado, no fim havia mais despesas do que receitas, mesmo contando já com os empréstimos contraídos para cobrir as receitas, fruto da votação complexa na especialidade. O que se passa nos Orçamentos é que depois do debate e votação geral há a votação artigo a artigo. Aí as maiorias mudam, variam muito conforme as matéria e tudo isto em tempo recorde, são votações intensivas, é muito complicado gerir. Houve Orçamentos, ainda na legislatura anterior - os dois últimos - em que, por razões várias que não posso comentar mas de que estou ciente, não foi fácil pôr de pé entendimentos quanto a muitas matérias, o que levou a uma votação complicada até aos últimos minutos. Isso voltou a acontecer também em 2020, voltou a acontecer para 2021.
Antevê-se que o próximo, até porque preparado em pleno processo para as autárquicas, possa vir a ser mais complicado. No cenário de vir a ser chumbado, dissolverá a Assembleia da República se for eleito para um segundo mandato?
Não espero que seja reprovado. Não espero como cidadão e não espero se for eleito pelos portugueses. Mesmo como PR em exercício de funções, olhando para os dados da situação, não o espero - nem desejo. É bom cumprir as legislaturas.
As autárquicas em outubro deste ano serão um bom barómetro para a situação política que o país viverá? Haverá um antes e um depois?
Há sempre. Com todas as eleições. Em relação ao retrato da situação política, todas as eleições são nacionais, têm uma leitura nacional.
Mas não está preocupado, não lhe parece que isso possa ser o primeiro grande problema para o seu eventual segundo mandato?
Para isso é que há eleições. A pessoa estar preocupada com a leitura que se faz das eleições, é estar preocupada com a vontade do povo. O voto autárquico é um voto muito personalizado, em que pesam muito as personalidades dos autarcas, o que fizeram, o que tencionam fazer, as alternativas, os ciclos políticos, mas há sempre leituras nacionais. Nas primeiras autárquicas houve um ciclo de eleições - as legislativas, com um resultado muito significativo embora não maioritário do Partido Socialista (PS), depois as presidenciais e, no fim desse ano, as autárquicas, que foram um reequilíbrio entre o PS e o Partido Popular Democrático (PPD), o atual PSD. Isto mostra que não há, necessariamente, uma reprodução eleição a eleição. Se me pergunta se desejo que isso signifique não haver legislatura até ao fim, não. Eu desejo que ela vá até ao fim. Espero que isso signifique uma perturbação no andamento da legislatura? Espero que não. O Presidente da República é Presidente da República, não é líder do partido A, B, C, D, E. As lideranças partidárias decidem fazer as suas leituras dos resultados eleitorais e, de repente, fazer isto ou aquilo, que comunicam ao PR ou ao país.
Já revelou que está preocupado com a bazuca e como o dinheiro poderá ser aplicado. Que investimentos devem ser prioritários?
Eu estou preocupado com a crise e com a rápida recuperação, estou preocupado com o aproveitamento dessa recuperação para acomodar questões de fundo porque é uma oportunidade que pode não se repetir. Não só por causa dos fundos - embora eu não goste da expressão bazuca, porque dá a sensação do tiro certeiro que resolve a situação; e há bazucas de vários tipos, aquelas em que vem uma concentração de meios, outras que são bazucas às pinguinhas - mas, porque isso não depende de nós apenas, depende também de decisões europeias. Não vai ser tomada uma decisão diferente para Portugal da que for tomada para os outros países europeus quanto à disponibilidade dos fundos, o momento, a forma, o calendário. Sabemos uma coisa: provavelmente teremos um calendário apertado para usar uma parte significativa do dinheiro. Portanto, tem de ser utilizado de forma relativamente mais rápida do que no caso de outros fundos europeus e, assim, mais atenta à utilização. Há um plano, apresentado em Bruxelas, e que vai ser reapreciado em Bruxelas, como os de todos os 27, provável e desejavelmente durante a Presidência Portuguesa, e há de haver uma decisão de Bruxelas acerca da decisão portuguesa. Nessa ocasião, aquilo que podemos desejar é que o que vier a ser disponibilizado venha a ser bem utilizado no tempo e no destino. E com transparência. Por isso eu vetei o diploma, por achar que devia ser melhorado em termos do acompanhamento, do controlo da utilização desses fundos europeus. Mas depois também, que se tenha a noção do seguinte: para Bruxelas há áreas para as quais disse logo que havia uma preferência, uma prioridade, que é o caso da transição energética e digital. Depois juntou, por causa da pandemia, a questão da saúde dentro de certos limites. Para isto nós sabemos que há, nomeadamente para as duas primeiras prioridades, um volume avultado de fundos disponíveis. Depois, a utilização é feita por cada Estado de acordo com aquilo que vem definido. Entretanto, o país e os problemas do país, não se reduzem a isso, que é um grande salto qualitativo, a transição energética e a transição digital. Há a qualificação, a transformação na vida das empresas, a aposta num tecido que é de pequenas e médias empresas e micro-empresas, onde estão a fazer um esforço maior, de forma notável, para essa reconversão digital e também energética. Depois há domínios que são institucionais ou sociais que são muito importantes.
Por exemplo?
Domínios institucionais: falava há pouco das forças armadas e de segurança, da justiça, e isto não é propriamente o que ocorre quando se pede a quem quer que seja para pensar num plano económico. Depois há a vertente social. Nós vamos sair desta pandemia com mais desigualdades, com mais pobreza. Não dá para dizer: sim, mas a única maneira de superar as desigualdades é crescendo, ao crescermos há de chegar o momento em que superamos as desigualdades. Isso é verdade, mas não chega. Porque até atingirmos um momento, em termos de crescimento, que permita olhar para situações que entretanto já são ou de pobreza alargada ou de pobreza aprofundada ou de desigualdades acentuadas, passa muito tempo. Portanto, há de haver medidas que, antes de esperar esse momento em que temos a economia a crescer de tal forma que é possível com isso ir superando alguns problemas sociais, possam superar problemas sociais mais urgentes. Isso há de estar presente na utilização dos fundos possíveis. Como é que se conjuga isso com o entendimento europeu quanto aos fundos disponíveis? Não será em muitos casos no Plano - fora a saúde ou aspetos da educação ou qualificação - de Recuperação e Resiliência, será no Mecanismo Financeiro Plurianual.
A bazuca tem ainda esta componente das infraestruturas. Faz sentido o TGV e o novo aeroporto estarem entre as prioridades?
Não vai imaginar que o PR vá, sobre essa matéria, introduzir o debate sobre a proposta apresentada por Portugal à Europa.