Não derrotar Sá Carneiro
O aniversário da tragédia de Camarate, evocado este domingo pela 42.º vez, conduz a justas homenagens institucionais e à consecutiva nostalgia partidária. Em artigos de opinião e fotografias pelas redes sociais, o PSD levanta-se em peso para recordar o seu fundador e ainda bem que é assim. Todos os partidos têm os seus pais -- mais ou menos mitológicos -- e o risco de algum sebastianismo é garantidamente preferível à amnésia sobre as suas próprias origens. Ter um passado -- com todo o desconforto que a antiguidade possa provocar -- é sempre melhor do que escolher esquecê-lo. E os sociais-democratas exibem-no, felizmente com orgulho, cada vez que a efeméride se celebra.
As citações mais recorrentes, entre outras, são: "Ser homem é ser livre"; "O que não posso, porque não tenho esse direito, é calar-me, seja sob que pretexto for"; "Nunca me senti tão sozinho, mas nunca tive tanta certeza de que tenho razão"; "A política sem risco é uma chatice, mas sem ética é uma vergonha". A conclusão, não generalizada ainda que comum, é que o país seria de hoje muito diferente se Francisco Sá Carneiro e Adelino Amaro de Costa não houvessem perecido em 1980. A outra conclusão, além do revanchismo algo infantil sobre quem hoje representa no PSD o "verdadeiro" sá-carneirismo, é de que Sá Carneiro ficaria desiludidíssimo com o atual estado do país -- algo, diga-se, não exatamente extraordinário dadas as circunstâncias.
A ambiência dos tributos tende a ser essa: este não é o Portugal de Francisco Sá Carneiro, este não seria o Portugal com Francisco Sá Carneiro e é preciso, urgentemente, cumprir o Portugal de Francisco Sá Carneiro, mesmo não se sabendo no que tal consistiria além do conceito -- bastante lato -- de "reformas".
Ora, com respeito pelo Sá Carneiro de cada um e ainda mais respeito pelos que ainda hoje sentem a sua falta, tenho outra perspetiva. É um risco, logo à partida, apostar em exercícios de história alternativa sobre o futuro-que-não-foi do então primeiro-ministro. Sá Carneiro prometera demitir-se caso Soares Carneiro perdesse as presidenciais contra Ramalho Eanes, e o facto é que perdeu. Cumprindo a promessa, é impossível adivinhar o que sucederia à maioria absoluta da AD sem Sá Carneiro a encabeçá-la. É acertado, isso sem dúvida, presumir que os fracos níveis de desempenho económico lhe causariam desgosto, assim como os casos de corrupção associados à política. O que não corresponde à verdade é a quase assunção de derrota do seu legado.
Se virmos com atenção, as três grandes batalhas que Sá Carneiro travou -- a partidarização, a desmilitarização e a europeização do regime a seguir ao 25 de Abril -- foram todas integralmente consumadas após a sua morte. As revisões constitucionais, que abriram a economia ao setor privado e o país à integração europeia, foram revisões constitucionais na linha de Sá Carneiro. A República de hoje, feita de cidadãos livres e sem excessos presidencialistas, é a República por que Sá Carneiro se bateu. O sistema político contemporâneo, capaz de pluralismo partidário e soluções à esquerda e à direita, é também um reflexo de Sá Carneiro, que procurou primeiro alianças com Soares e depois com o CDS. Até o seu partido, tradicionalmente mais assente em lideranças do que em programas, continua herdeiro da sua singularidade.
O meu conselho, até atentando ao caráter misterioso e simultaneamente vincado da sua personalidade, é pensar mais no que foi e não no que poderia ter sido. A nossa democracia, com os seus defeitos e caminhos por percorrer, seguiu uma estrada de que Sá Carneiro foi um dos maiores obreiros. O país pode não estar como Sá Carneiro teria ambicionado que estivesse, mas a democracia portuguesa é como Sá Carneiro lutou para que fosse. É essa sua vitória, no final do dia, que permitirá que algo mude. É essa sua vitória que, a cada 4 de dezembro, merece a maior vénia. E é essa sua vitória que me faz apelar:
Não derrotem um homem que venceu.
Colunista