NÃO BEBER 'SUMOL' P OR AMOR A CRISTO

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Café, compras, Sumol, maquilhagem, álcool, Messenger, doces ou jogos de futebol. Estes foram hábitos deixados para trás por alguns católicos durante a Quaresma que terminou agora. Um período de 40 dias que antecede a Páscoa e no qual procuraram também uma contenção nas palavras, em especial as críticas, que ferem o próximo. Estas renúncias exprimem as novas formas criativas do jejum e da abstinência que a Igreja Católica vem recomendando para melhor viver a Páscoa da Ressurreição: o momento mais alto do ano litúrgico. Aquele em que, para os católicos, Jesus Cristo ressuscitou.

"Renunciar é um exercício de liberdade." A frase, provocadora, é de Luís, católico de 54 anos, que escolheu privar-se do álcool e dos jogos de futebol na televisão. "Mas é preciso compreender o contexto", vai avisando, consciente de que, "quem está de fora" dificilmente compreenderá o intuito desta privação e tenderá a associá-la ao cumprimento de regras absurdas. "Desenquadrada, esta visão é uma estupidez. É de insultos, fundamentalista. Mas para quem acredita que Cristo ressuscitou e é o Absoluto das nossas vidas faz todo o sentido."

Não encher o copo do vinho soberbo, guardado há muito na garrafeira para o almoço de fim de semana com os amigos, ou dispensar as várias horas semanais passadas a ver futebol na televisão, custa. "Claro que custa. Tenho seis canais de desporto e vejo tudo, até a segunda divisão inglesa. Mas este esforço não passa de uma renúncia a algo supérfluo que me ajuda a consciencializar o relativo em relação ao Absoluto", afirma, pragmático, este advogado de Lisboa. "Deus é único, fiel. Tudo o resto é indiferente e passageiro", explica, sublinhando que, "sempre que se cumpre o que se renuncia, é muito mais gratificante do que penoso. Ganha-se em liberdade de espírito e atenção ao que é essencial".

Ao lado, Maria, mulher de Luís, vai enumerando as suas renúncias, que cumprem o mesmo propósito: "não faço compras para mim, não vejo televisão depois do jantar". Para além do jejum de carne que a Igreja pede que se faça na sexta-feira. O dinheiro e o tempo acumulados são investidos em oração e leitura e na esmola entregue à Igreja. A tentação foi sempre vencida, diz, mesmo quando da loja onde habitualmente compra roupa ligaram a perguntar porque não tem aparecido. "Primeiro não expliquei. Mas a senhora insistiu e lá respondi: desculpe mas na Quaresma não faço compras!", relata.

Contenção nas palavras

A discrição no cumprimento das privações é recomendada pela Igreja no Evangelho de Quarta-feira de Cinzas: "Que a tua mão esquerda não saiba o que fez a direita, a fim de que a tua esmola permaneça em segredo." Mas se o alerta impõe recolhimento e leva este casal a escolher um nome fictício, há quem, depois de muito reflectir sobre o assunto, contraponha com outro argumento. "Jesus, quando disse: 'vós sois a luz do mundo', não pediu que déssemos testemunho?", questiona Marta Silveira.

Aos 27 anos, esta jovem psicóloga já percorreu um longo caminho de fé. Esta ano optou por "silenciar" algumas fontes de "ruído" que considera roubarem-lhe tempo para rezar ou pensar no sacrifício de Jesus na hora da crucificação: a televisão acesa durante as refeições, o rádio no carro, o sudoku no comboio ou os bolos que mais gosta de comer. Mais importante, diz, foi o "jejum de palavras", e o esforço por silenciar comentários pejorativos e queixumes. Tudo isto são "exercícios para me disciplinar, treino espiritual que me faz parar para pensar. Deus precisa de espaço, se andamos a correr, passamos ao lado". É como se a renúncia fosse um presente para Deus, entregue de boa vontade, sem cara feia, explica. "Se não como o pastel de nata e fico de mau humor, de mal com a vida, não serve de nada". Depois do "treino", os "frutos" são enormes, assegura: "Fico menos egoísta e mais disponível para ajudar os outros."

O crescimento interior que perdura para além do período quaresmal é também, para Cristina Tordo, o essencial. Mais do que os bolos e cafés que ficaram por tomar e os euros poupados para esmolas, Cristina, 32 anos, realça, "a consciência que se ganha e a tentativa que fica de nos melhorarmos a nós mesmos". Tal como Cristo passou pelo deserto até chegar à ressurreição, exemplifica, "estas coisas ajudam-me a estar disponível para acolher melhor. Mas só faz sentido se for para atingir estádio melhor".

Com Fátima Nunes, os doces também ficaram de fora. A ideia de renunciar foi tomada junto dos jovens que acompanha enquanto chefe dos escuteiros. "Cada um escolheu algo que o obrigasse a lembrar que estamos em época especial", conta esta engenheira de telecomunicações, 31 anos.

Este propósito de renunciar a hábitos e coisas da vida comum não é novo. Para além das indicações do jejum normal da sexta-feira e da esmola, este ano bastante incentivada pelo Papa, as práticas criativas têm vindo a ser desenvolvidas ao longo dos anos. Mas a renúncia deve ter sempre o mesmo propósito, explica o jesuíta Vasco Magalhães. Ou seja, "prescindir do que nos retira qualidade de vida. O objectivo não é o sacrifício por si mas o treino do espírito para corrigir o que nos desumaniza." Que pode ser um excesso alimentar, um jogo de futebol, ou a falta de tempo para dedicar ao próximo. |

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