Nando Reis: "A situação política do Brasil é tenebrosa"
Nando Reis, paulista, tem 55 anos. Revelou-se ao grande público no grupo Titãs, um dos "pais fundadores" do rock brasileiro, a que pertenceu - como baixista, compositor e cantor - de 1982 a 2001. Ainda antes de abandonar o elenco da banda, na sequência das mortes de Marcelo Fromer (guitarrista dos Titãs) e Cássia Eller (com quem gravou três discos), já se tinha espraiado noutras direções, em especial como compositor de êxitos para outros músicos. Essa lista contempla, entre outros, Marisa Monte, Cássia Eller e os grupos Skank, Jota Quest e Cidade Negra. Colaborou na banda sonora de um filme sobre o duo de música sertaneja Zézé di Camargo & Luciano e participou nas gravações de um supergrupo chamado Levee Walkers, que integra Mike McReady (Pearl Jam) e Duff McKagan (Guns N"Roses), entre outros. Integra o grupo Trinca de Ases, que hoje atua em Lisboa, desde 2016. Em paralelo, continua a fazer espetáculos com a sua banda, Os Infernais. É um dos autores mais tocados no Brasil, em nome próprio e através de outras vozes. Foi colunista do jornal Estado de São Paulo, onde escrevia sobre futebol. Tem cinco filhos, dois dos quais, Theodoro e Sebastião, são também músicos e integram o grupo 2Reis.
Os números estão certos, o qualificativo também. Mas como nasceu a Trinca de Ases?
A Trinca de Ases nasceu em outubro de 2016, a partir de um evento que realizámos em Brasília e que celebrava o centenário do nascimento de Ulysses Guimarães [político que foi um dos principais opositores à ditadura militar brasileira]. O show foi um protótipo daquele que fazemos agora - o [Gilberto] Gil tocava sozinho quatro músicas, só com o violão, depois em tocava outras quatro, também sozinho, a seguir fazíamos seis canções em conjunto e, por fim, chamávamos a Gal [Costa] para mais seis temas. Correu muito bem, a nossa interação, o resultado musical, e veio a ideia de estender.
Dois baianos, um paulista. Duas pérolas da MPB e um filho do rock. Dois criadores e uma intérprete. Como se parte destes "casamentos" para a construção de um espetáculo e de um reportório?
Houve vários pressupostos para que o show ganhasse forma. Desde logo, a ideia do Gil em convocar, montar uma banda e, assim, evitar que o todo assumisse um caráter de recital, com apresentações solitárias e/ou acompanhadas apenas por um instrumento. Depois, pelo facto óbvio de eu conhecer muito mais o trabalho deles do que eles o meu, eu encarreguei-me de ir sugerindo canções e abordagens próprias. Procurámos um equilíbrio no alinhamento, cruzando músicas conhecidas com novas. Fazemos três inéditas: Trinca de Ases, do Gil, Dupla de Ás, minha, e Tocarte, do Gil e minha. Dentro do meu reportório, eu fui escolhendo as canções que me pareceram mais adequadas - por exemplo, Espatódia, que eu gostava de ouvir cantada pela Gal e ficou bem bonita. Passámos do papel aos ensaios, fomos depurando e chegámos ao formato final, que é o que vamos apresentar em Portugal.
Conhecido e destacado como produtor, o Nando assume algum papel específico na sonoridade da Trinca e dos shows?
Não é bem verdade que eu seja um produtor... Eu produzi alguns discos na minha vida, alguns que considero importantes - e aqui é inevitável citar os três discos que fiz com a Cássia Eller. O meu papel na Trinca? Torna-se complicado, para mim, analisar, até porque pode parecer presunçoso... Eu toco violão... Acho que pelas minhas características como músico, pelo facto de ser mais jovem, eu tenho um tipo de energia, de envolvimento em palco que acho que é contagiante, mas não há nenhum papel especial. Eu e Gil somos os instrumentistas, a Gal apenas canta - o que não é pouco, evidentemente. Mas é engraçado, e isso já foi referido várias vezes pelo Gil, este show permite-nos ser, aqui e ali, só músicos de apoio. Acontece comigo quando toco violão para o Gil ou a Gal cantarem.
O Nando é um dos grandes autores/compositores da Música Brasileira dos nossos dias. Além do que canta, teve êxitos "distribuídos" por Marisa Monte, Cássia Eller, os Skank, os Jota Quest, os Cidade Negra, para citar só alguns. Escreve a pensar no destinatário?
Eu gosto muito de compor, é a génese de tudo e abastece os meus discos e os meus shows, inclusivamente a minha conta bancária (risos)... Eu componho de todas as formas, às vezes até sem nenhum objetivo de remeter aquilo que vou fazendo para um disco ou para um espetáculo, mas só pela vontade de compor, movido pela necessidade de encontrar e de descobrir. Outras vezes, faço-o por encomenda, pensando especificamente no intérprete a que se destina. Veja-se o caso de Dupla de Ás, escrita para este show e para nós os três cantarmos em conjunto. Compus uma música para a Gal, chamada Mãe de Todas As Vozes, não só pensada propositadamente para ela como valendo quase uma homenagem à sua carreira, ao seu percurso -a Gal vai gravá-la no próximo álbum. De todos os casos que citou, o mais "volumoso" é dos Skank, em que sucede que o meu parceiro, o Samuel [Rosa, cantor do grupo de Belo Horizonte], não escreve letras. Ele envia-me as melodias e eu, quando escrevo, claro que tenho em conta o destinatário. Mas isso nem sempre é decisivo - e o importante é pensar na própria canção.
As suas canções têm, muitas vezes, um forte pendor autobiográfico, quase confessional. É fácil conciliar essa tendência com a entrega a outras vozes?
Eu acho que toda a criação tem, de uma certa maneira, um pendor autobiográfico mesmo que não transpareça uma relação direta com a vida do autor. Eu sou, em muitas ocasiões, explicitamente, fortemente autobiográfico - até nominalmente, quando há canções que citam o nome dos meus filhos... Há músicas que eu componho que sei que só eu posso ou vou querer cantar, há inúmeros exemplos disso dentro da minha discografia. Quando eu vou compor para outra pessoa cantar, eu tenho tendência a pensar nela, na sua voz, no seu timbre - mas nem sempre, isso não é uma regra infalível. Cito um caso: Diariamente foi uma canção que escrevi para a Marisa Monte e, apesar de ser fortemente autobiográfica, foi muito bem assumida por ela, que soube ultrapassar essa componente e chamar a música para o seu domínio, para o seu território, digamos assim. Ou seja, é um exemplo de como algo autobiográfico não perde sentido ao não ser cantada pelo seu autor.
Quando poderemos esperar a sequência de Jardim-Pomar, o disco que lançou em 2016? Já tem canções ou, pelo menos, uma ideia de como vai ser o próximo trabalho?
Os planos que tenho para o próximo capítulo não correspondem a um disco autoral: eu quero regravar canções de um outro autor. Mas esse ainda é um projeto que está em estudo, em andamento, e nada garante que venha a concretizar-se. Do meu lado, eu estou a compor com grande regularidade, tenho já algumas canções novas, mas como ainda estou em digressão com o Jardim-Pomar, acredito que o meu próximo disco de inéditas não vá ser lançado antes de 2020.
Para um fã dos Titãs, a pergunta é inevitável: não põe(m) a hipótese de um reencontro, ao menos para uma digressão?
Não... Eu fiquei vinte anos nos Titãs, fizemos coisas magníficas, é uma parte muito importante da minha história, mas está cumprida. Tivemos um show especial, em que participei, para assinalar os 30 anos de carreira [a 6 de outubro de 2012, em São Paulo] e é sempre possível que aconteça algo do mesmo género. Mas um regresso em forma, de maneira alguma, é muito pouco provável. Isto embora eu, justamente no disco Jardim-Pomar, tenha gravado uma faixa, Azul de Presunto, em que chamei Paulo Miklos, Arnaldo Antunes, Sérgio Britto e Branco Mello, os cantores dos Titãs, para cantarem comigo. Foi a primeira vez, em muitos anos, que entrámos juntos em estúdio para gravar uma canção inédita. Foi muito bom, mas penso que vamos deixar por aí.
Como analisa o presente da Música feita no Brasil: há mais renovação ou mais cristalização? Há revelações? E, em caso afirmativo, quais são as que mais lhe agradam e porquê?
A música do Brasil é sempre farta, fértil, surpreendente... O Brasil é um país enorme e há grandes polos de expressão. No momento, talvez se destaque o Rio de Janeiro com toda a produção de funk. Mas eu não gosto de analisar, porque já testemunhei muitas vezes quem se expusesse nessa opinião e recebesse de volta um mal-entendido danado. Tenho a minha opinião, claro, mas prefiro resguardá-la. Prefiro dizer apenas isto: tudo o que toca, toca em alguém. E aqueles que fazem sucesso, por tocarem mais gente, terão certamente um grande valor.
Continua um adepto convicto do São Paulo Futebol Clube ou os últimos anos, sem êxitos assinaláveis desde o tri-campeonato 2006-2008 esmoreceu essa paixão? Ainda vai ao estádio?
Nunca, a minha paixão pelo São Paulo nunca esmorece... Há já algum tempo que o tricolor não tem bons times [equipas, planteis], muito reflexo de administrações ruins - o que acontece dentro de campo é sempre reflexo do que se passa nas direções. E o futebol brasileiro, ao nível dos clubes e da própria seleção, tem uma gestão horrível. Eu não tenho ido com frequência ao estádio, precisamente porque o time não me entusiasma mas recordo uma ocasião, maravilhosa, no ano passado, em que fui com os meus filhos e os meus netos. Foi magnífico. E, confesso, eu amo ir ao estádio!
O Brasil político tem andado nas bocas do mundo, pelas piores razões, com a destituição de uma Chefe de Estado e o julgamento de um ex-presidente a dividir o país praticamente ao meio. Como cidadão, que leitura faz dos acontecimentos?
É, o Brasil tem andado mal... A situação é tenebrosa: há uma dificuldade enorme de renovação da classe política, há uma enorme falta de ética não só nos políticos como no poder judicial. Eu ando desanimado e, com muita tristeza, penso que o Brasil vai levar muitos anos para refazer, para reconstruir, a partir do desastre que foram os últimos anos na sua política social e económica. O pior de tudo parece mesmo ser a corrupção, o que floresce no país é a impunidade. Há uma cultura que privilegia a elite e esta envolve a própria classe política... Os políticos legislam para si mesmos, o poder judicial tem uma forma de se manter indiferente, digamos assim - como se fossem classes especiais que não se submetem à própria Constituição. É uma vergonha o que se passa no Brasil e há reflexos na sociedade que ressaltam das piores maneiras. Há uma grande polarização, há um moralismo assustador, há um candidato inaceitável, que é o Jair Bolsonaro, com ideias inacreditáveis... Eu sou um otimista mas, perante esta situação, não consigo manter esse espírito. Ainda há pessoas e possíveis candidatos em que acredito, mas o tempo é mesmo de ceticismo.
Trinca de Ases
Campo Pequeno, Lisboa, 9 e 10 de março, Coliseu do Porto 11 de março, 21.00
Bilhetes de 25 a 80 euros