Nações desunidas na guerra civil síria

O ataque a um comboio humanitário nos arredores de Aleppo veio mostrar não existirem limites para a violência na guerra civil de mais de cinco anos. Só há uma certeza: o Estado Islâmico está a ficar mais fraco.
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Que consequências tem o ataque para as populações?

O comboio humanitário, de mais de 30 veículos, transportava farinha, alimentos, roupa de Inverno e cobertores para satisfazer as necessidades básicas de quase 80 mil pessoas nos arredores de Aleppo quando foi atacado por aviões e helicópteros segunda-feira ao fim do dia, provocando a destruição de mais de metade dos veículos e a morte de 21 pessoas. Além da inutilização da maior parte da ajuda humanitária, as Nações Unidas, a Cruz Vermelha Internacional, o Crescente Vermelho e as ONG presentes na Síria anunciaram a suspensão das suas operações em todas as áreas onde se verificam combates e cujo controlo está repartido entre as diferentes fações. As consequências são as de uma ainda maior deterioração das condições de vida dos civis nas áreas sob controlo das forças da oposição, pressionando aqueles a abandonarem-nas ou mesmo a trocarem-nas por aquelas na posse do regime de Damasco.

Quem foi responsável pelo ataque?

Testemunhos oculares referem que, desde a partida de Aleppo do comboio de veículos, este foi seguido por aviões de combate e helicópteros, iniciando-se o ataque no momento em que este chegou ao seu destino. Segundo as ONG envolvidas, todas as partes do conflito tinham sido notificadas do trajeto do comboio e os veículos estavam claramente identificados. Um ataque desta natureza equivale a "crime de guerra" e deve ser tratado como tal, consideraram representantes da ONU e das ONG. O enviado especial da ONU para a Síria, Staffan de Mistura, classificou o sucedido como um "monstruoso ultraje". Um porta-voz do Ministério da Defesa russo afirmou que o comboio "se incendiou" durante uma "ofensiva rebelde". As forças da oposição não dispõem de meios aéreos de combate. Os EUA afirmaram ontem ao final do dia que o ataque foi levado a cabo por aviões de combate russos.

Que influência terá na guerra civil o fim do cessar-fogo?

O ataque de segunda-feira coincidiu com o anúncio do fim do cessar-fogo em vigor há uma semana e que fora negociado pelos Estados Unidos e a Rússia. Damasco utilizou como pretexto o ataque aéreo americano do fim de semana em que foi alvejada uma concentração de forças fiéis ao regime, provocando cerca de 60 mortos. A oposição também criticou os termos em que foi negociado o cessar-fogo, afirmando que este favorecia o regime de Bashar al-Assad, permitindo o descanso e reabastecimento das tropas governamentais, enquanto as suas milícias permaneciam em localidades cercadas e sem liberdade de movimentos.

Qual a situação no terreno após cinco anos de combate?

O regime de Damasco recuperou alguma iniciativa no terreno após a intervenção russa, em setembro de 2015. Anteriormente, contara com o apoio em treino e efetivos dos Guardas da Revolução iranianos e do Hezbollah libanês, mas sem conseguir passar à ofensiva, apesar da debilidade militar da oposição, dividida entre diferentes grupos e em conflito aberto quer com o Estado Islâmico (EI) e outras formações islamitas quer, por vezes, com as milícias curdas. Só a intervenção aérea da coligação internacional contra o EI e outros islamitas tem contribuído para reforçar o controlo da oposição em certas regiões do país.

Quais são os grandes aliados do regime de Assad?

Damasco está isolado internacionalmente desde o início da contestação ao regime de Assad. Em 2011 foi suspenso da Liga Árabe, que decretou um conjunto de sanções nesse ano. Além do Irão xiita, denominação do Islão em que se integra o regime de Assad, apenas a Rússia e, de forma até há pouco mais discreta, a China são os seus grandes apoios. Os dois últimos têm bloqueado projetos de resolução a condenar Assad com o seu direito de veto no Conselho de Segurança da ONU. O apoio sino-russo-iraniano assenta em fortes motivações geopolíticas. Para Teerão, é fundamental manter um "arco xiita" na região (Irão-Síria-Líbano) enquanto para Moscovo as bases aeronavais na Síria são indispensáveis para assegurar a presença e projeção de forças na área do Mediterrâneo. Para Pequim, qualquer adversário de Washington é um seu aliado no longo conflito por procuração que mantém, em diferentes partes do mundo, com os Estados Unidos. Mas para além da venda de armas - uma prática de longa data -e da concessão de apoio no treino e preparação de militares sírios, não é verosímil um envolvimento direto chinês no conflito, ao contrário do sucedido com Teerão e Moscovo. Pela dupla razão de que contraria um dos fundamentos da sua diplomacia - o princípio da não intervenção em conflitos externos - e iria pôr em risco as relações de Pequim com muitos países árabes dos quais depende para as necessidades em energia.

A coligação está a conseguir os seus objetivos?

A coligação internacional formou-se em setembro de 2014 com a finalidade de derrotar o EI. Integra 67 Estados e tem realizado ataques aéreos na Síria e Iraque, além de missões de treino e formação das forças de segurança iraquianas e apoios de países individuais a certos grupos da oposição a Assad. O objetivo principal - a derrota do EI e a sua neutralização como força combatente está ainda longe, mas o grupo islamita está a perder terreno, influência e tem sofrido pesadas baixas. Desde há um ano que passou à defensiva e, no mesmo espaço de tempo, terá perdido cerca de dez mil combatentes, entre mortos, desertores e voluntários que regressaram aos países de origem. No plano político, uma solução para a guerra civil na Síria e a estabilização do país permanecem tão distantes ou mais do que no momento do surgimento da coligação.

De que maneira está o EI a perder influência?

Ainda que de forma paulatina, o grupo islamita tem vindo a ser desalojado das principais cidades sob seu controlo no Iraque, como Fallujah, Ramadi e Sinjar. Dos grandes centros urbanos apenas domina Mossul. Na Síria, perdeu o controlo de 20% do território na sua posse - dez mil quilómetros quadrados na estimativa da coligação internacional - e viu serem eliminados importantes dirigentes, como o número dois do grupo, Abd al-Rahman Mustafa Al-Qaduli. Devido aos recuos no terreno, tem perdido acesso a recursos, estimando-se que tenha sofrido uma quebra de 30%/mês nas suas receitas. Assim, segundo a agência de informações e análise de mercados IHS Markit, as receitas mensais do EI - venda de petróleo e drogas, impostos, expropriações - passaram de 80 milhões de dólares (71,5 milhões de euros) em meados de 2015 para cerca de 56 milhões de dólares (50 milhões de euros) em março do corrente ano. Por outro lado, a sua capacidade de recrutamento de combatentes estrangeiros está comprometida pelos revezes no terreno, a redução das verbas que lhe são prometidas e por um mais eficaz controlo das forças de segurança daqueles suscetíveis de cederem à propaganda do EI.

Qual a situação atual dos civis na Síria?

A longa duração do conflito e o nível de violência que não tem cessado de se acentuar, visando de forma clara os civis - de que é exemplo mais recente o sucedido segunda-feira nos arredores de Aleppo - afetou mais de metade da população síria, cerca de 22 milhões em 2011. Assim, existem hoje quase cinco milhões de refugiados e mais de seis milhões de deslocados. Até março, tinham perdido a vida cerca de 470 mil pessoas e quase dois milhões foram feridas. A expectativa de vida passou dos 70 anos, em 2011, para os 55 anos, em 2015. A destruição de infraestruturas está a deteriorar as condições de vida das populações. O número de pessoas a viverem no limiar da pobreza aumentou 85% só em 2015.

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