Na sanita do ministro

Publicado a

Cada remendo rasga um buraco, cada curativo abre uma ferida, cada recomeço provoca um fim. Tem sido assim a vida de António Costa no último ano. A maioria absoluta, que vinha pôr termo à instabilidade da "geringonça". A tomada de posse, ao fim de dois meses de hiato eleitoral, que dava início a um novo ciclo. A aprovação do Orçamento do Estado, que colocava em marcha o programa do governo. As medidas extraordinárias, que colmatavam as lacunas do mesmo Orçamento. Os 125 euros, que afinal traziam um corte nas pensões. A entrada de um secretário de Estado adjunto, que ia resolver a coordenação política no governo. Os processos do mesmo secretário de Estado, que implodiram o governo. A entrada de uma secretária de Estado para o Tesouro. A indemnização que a mesma secretária de Estado deve ao Tesouro. O "circuito" entre primeiro-ministro e Presidente para filtrar as nomeações para o governo. O "mecanismo de escrutínio" que só levantou mais suspeitas sobre o mesmo governo.

É assim. Não saímos disto. O PS, exausto de si mesmo, tornou-se uma gigantesca pescada engasgada na própria cauda. A ideia de preencher um questionário com 36 perguntas entre o convite e a nomeação para o governo não é uma anomalia na maioria absoluta; é tudo o que a maioria absoluta tem sido. Somente num quadro onde a mentira se banalizou é que a honestidade é dada como tão rara; apenas num país onde já não se acredita em ninguém é que se assume duvidar de toda a gente.

Não é por acaso que, ao longo destes dias, ninguém se lembrou que todos os governantes em Portugal juram por sua honra "cumprir com lealdade as funções" que lhes são confiadas. Gomes Cravinho, que jura ao parlamento não ter desvalorizado um desfalque financeiro que desvalorizou no mesmo parlamento. Medina, que nega que uma notícia sobre uma "indemnização milionária" numa empresa que tutelava tivesse "alguma coisa que chamasse à atenção".

O "mecanismo", além de desprezar a presunção de inocência, institui a suposição de suspeita. Todos passam a ser suspeitos até notícia em contrário - no caso deste governo, por culpa inteiramente sua. A co-responsabilização, tendo sido negada entre Belém e São Bento, fez-se entre governo e candidato a governante. Caso o segundo viole o compromisso, o governo desculpar-se-á prontamente da seguinte forma: "Fulano tal é que faltou à verdade no respetivo formulário. Venha o próximo, se fizer favor". E siga.

É tudo um tanto básico, um tanto tolo e bastante degradante. Em primeiro lugar, porque todos os casos que culminaram na crise política de dezembro poderiam ter sido evitados sem mecanismo nenhum, na medida em que eram todos relativamente públicos. Com maior ou menor destaque mediático, os processos de Miguel Alves, a indemnização de Alexandra Reis e a acusação ao marido de Carla Alves foram alvo de notícia antes de os visados serem convidados para o governo. Em segundo, porque nenhuma das 36 questões do "mecanismo" teria impedido que Alexandra Reis chegasse a secretária de Estado. Em terceiro, porque quando uma das perguntas foi feita e devidamente respondida - a Carla Alves, por exemplo - tal também não travou a nomeação.

Mais do que isso, causa perplexidade que os atuais membros do governo estejam isentos de um escrutínio que avaliará os seus futuros colegas, dando origem a um executivo a duas velocidades - pelo menos éticas - com critérios potencialmente desiguais. Basta imaginar. Se as respostas ao questionário são secretas (contrariamente às declarações de património, rendimento e interesses) quer dizer que a avaliação das respostas será igualmente reservada e, por isso, subjetiva consoante o caso ou a pessoa. O ministro "A" pode ter mais cruzinhas erradas do que o secretário de Estado "B" e passar o crivo, ou vice-versa. O método, não sendo público, é arbitrário; e sendo arbitrário, não é método nenhum.

Em suma, em nome da transparência, reforça-se a opacidade.

Num país em que os políticos já têm de comunicar ao Tribunal Constitucional quantas casas-de-banho têm na sua residência, num regime que patrioticamente senta o povo nas sanitas dos seus ministros, este novo "mecanismo" é só mais uma humilhação no que é servir a vida pública portuguesa. A todos os loucos que a ela se dedicam, a minha sincera solidariedade. A António Costa, uma mera sugestão: o problema de demasiadas cortinas de fumo, sr. primeiro-ministro, é tornarem o ar irrespirável.

Colunista

Diário de Notícias
www.dn.pt