Na rodagem de "8 1/2" com as fotografias de Gideon Bachmann

São 100 fotografias do filme de Fellini para ver na Festa do Cinema Italiano.
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Há uma imagem de Federico Fellini num momento de descontração, a rir. Outra de Claudia Cardinale a fumar numa pausa da rodagem. De Marcelo Mastroianni, o verdadeiro galã, de óculos escuros. No total, são cem as fotografias que Gideon Bachmann tirou durante a rodagem do filme 8 1/2 e que agora podem ser vistas em Portugal, graças à Festa do Cinema Italiano - a maioria está no Cinema São Jorge, mas também há algumas no cinema UCI - El Corte Inglés, no Instituto Italiano de Cultura de Lisboa e na Fnac Santa Catarina, no Porto. O fotógrafo, atualmente com quase 90 anos, teve acesso privilegiado ao plateau. E isso é algo que se percebe nesta exposição.

Dizer que a vida de Gideon Bachmann dava um filme não é nenhum exagero. Nasceu em Heilbronn, perto de Estugarda, na Alemanha, e em 1936 emigrou com a família judia para a Palestina. Assim que a guerra acabou, Gideon, então com 18 anos, veio para a Europa. Em 1947-48 viveu em Praga, estudou economia, deu aulas de inglês e começou a trabalhar como jornalista (escrevia e fotografava). Com a chegada do comunismo à Checoslováquia, muda-se para Nova Iorque, onde trabalhava como agente de viagens e estudava escultura quando o amigo Hans Richter, que dava aulas de cinema do City College, o desafiou: "Porque é que não experimentas vir a umas aulas de cinema?"

Foi aí que tudo começou, recorda Gideon Bachmann numa conversa ao telefone em inglês (ele fala sete línguas, mas não português). Pouco depois começou a fazer um programa sobre cinema na rádio: "Estive no ar durante dez anos, entrevistei cerca de 800 realizadores e eram conversas longas, profundas, de uma hora", recorda.

Foi assim que em 1956 Bachmann conheceu o realizador italiano Federico Fellini. "Entrevistei-o no programa e ficámos amigos. Mostrei-lhe a cidade", conta. "Naqueles dias houve uma enorme tempestade de neve na cidade mas eu tinha um jipe, como os do exército, e assim podíamos ir a todo o lado, a Brooklyn, ao Bronx, a todo o lado." Mantiveram o contacto e, em 1961, Bachmann veio até à Europa para ir ao Festival de Cannes e aproveitou para dar um saltinho a Roma para visitar o amigo. "Ele estava a filmar Boccaccio"70. Convidou-me a ficar em Roma mais tempo mas eu não podia, ia estar só por três dias. Mas a ideia ficou na minha cabeça." No ano seguinte voltou, sem viagem de regresso marcada. "Viver em Roma naquela altura era fabuloso. Não havia guerras, havia pouco trânsito e muito tempo livre. Não era muito caro, havia boa comida, pessoas interessantes", recorda. De certa forma, era a verdadeira dolce vita.

Bachmann era um grande admirador de Fellini, chegou a escrever que ele era "o Leonardo Da Vinci do cinema italiano". Ficou fascinado pela oportunidade de acompanhar a rodagem de 8 1/2. "Estava lá todos os dias e tinha liberdade para fotografar o que eu quisesse." Tudo foi especial nesta aventura. Por exemplo, o facto de Gideon Bachmann aparecer numa das cenas de 8 1/2: "Fellini precisava de filmar um homem a tirar fotografias, e eu estava lá a tirar fotografias. Foi simples", lembra.

Ou de ter usado os restos de película do filme: "Todos os dias, levava os restos da película, enrolava--os e colocava-os na minha máquina fotográfica." Tirou quase dez mil fotografias. No final, teve oportunidade de assistir ao primeiro visionamento, em que só estavam Bachmann, Fellini e Nino Rotta, o autor da banda sonora de 8 1/2. "A primeira versão tinha quase quatro horas. E ainda tinha o som captado no set, o que era muito estranho. Na Itália, os filmes eram todos dobrados posteriormente. Aquele foi um visionamento único."

Em 1970, partiu dessa experiência para realizar o documentário Ciao, Federico!, de que Fellini não gostou muito. "Mostrava como ele estava a ser muito egoísta e a usar as pessoas à sua volta." Por causa desse filme, os amigos estiveram sete anos sem se falarem. Mas tudo acabou bem. "Para mim, os melhores filmes são os que Fellini fez até 8 1/2. A ideia mais importante deste filme é que podemos desistir das nossas ambições. A ideologia moderna diz que devemos acabar tudo o que começamos, e aqui defende-se o contrário. Somos livres de desistir." Na opinião de Bachmann, tal como o protagonista de 8 1/2 desiste de fazer o seu filme, também Fellini desistiu de fazer um cinema "com pessoas reais". E conclui: "A partir daí, é o declínio da responsabilidade social e cultural de Fellini. Ele começa a fazer aqueles filmes coloridos, com cenários exuberantes. Mas são filmes muito populares. Os filmes bons são os que nos fazem pensar, mas hoje em dia as pessoas querem ir ao cinema para não pensar."

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