Na reconstrução de um país
Foram muitas as imagens icónicas na visita do Papa Francisco ao Iraque, mas talvez nenhuma tão forte como a da celebração de uma missa junto à catedral destruída de Mosul. Num cenário devastado, o Papa conseguiu transformar, por momentos, um ciclo de tragédias numa mensagem de reconstrução, não apenas urbanística, mas social, politica e até civilizacional. Nunca poderá ser de outra forma. Trabalhar uma convivência reconstrutiva entre católicos, ortodoxos, protestantes, assírios, yazidis, mandeístas, shabaks, yarsanistas, judeus, mas também árabes, curdos, turcomanos, arménios ou afro-iraquianos, só será possível se os respetivos líderes religiosos e políticos aceitarem o seu papel orientador, marcado por uma mensagem de reconciliação capaz de estabilizar o diálogo interétnico e interinstitucional, expurgando qualquer degeneração ideológica e religiosa. O que a visita do Papa também nos diz, para além do natural sentido protetor das minorias cristãs, é que a reconciliação não pode deixar de ser feita no interior da mesma família, ou seja, que o Islão deve abraçar a estabilidade interna. Por isso esteve em 2019 no Cairo com o grande Imã Al-Azhar, autoridade máxima entre os sunitas, e agora com Al-Sistani em Najaf, a principal figura tutelar dos xiitas.
Claro que o simbólico em política cumpre um certo papel e não garante por si estabilidade duradoura. Ninguém põe isso em causa: a ação dos líderes religiosos, mesmo que no caso do Papa isso coincida com o papel de chefe de um Estado, tem sempre os limites inerentes aos instrumentos de que dispõe. Mas a palavra é um deles e sabemos quão poderosa pode ser na identificação de dilemas sociais cristalizados (como as desigualdades e as injustiças), nas pontes que promove (com líderes políticos e outras religiões), na voz que dá a quem nunca se consegue fazer ouvir (comunidades esquecidas, grupos vulneráveis, associações desconhecidas com trabalho meritório), e até na colocação de novos temas no debate público. A palavra em política é a estrutura em que a ação de baseia: mobiliza, reconcilia, constrói, mas também destrói, afugenta e isola. A sua qualidade define o mensageiro, o seu lugar na História, o caminho que está disposto a trilhar, os esforços conjuntos que procura ou os recalcamentos e medos que não se coíbe de promover.
O exemplo extremo do Iraque leva o dramatismo para uma dimensão quase transcendental, mas a pandemia que atravessamos não deixa de nos transportar para necessidades aproximadas.
Estão à prova os limites da coesão social, da temperança entre gerações, grupos profissionais, instituições públicas e privadas. Mas também da coesão económica, agravadas pelo fosso salarial, competências educativas, desigualdades territoriais e geracionais. Voltar a coser o que a pandemia desagregou é um autêntico projeto de país. Haverá quem o queira dividir e quem o procure reerguer. Quem se preocupe com os mais vulneráveis e quem se aproveite do rolo compressor. A visita do Papa diz-nos, acima de tudo, que o simbolismo corajoso pode por vezes ultrapassar os limites que o poder lhe impõe e ser ele o motor das transformações que qualquer país precisa para se reencontrar. E se a fé não for suficiente, que a inteligência e a sorte acompanhem os audazes.
Investigador