Na raia, um muro contra maus ventos (Episódio 33)

FICÇÃO POLÍTICA. O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa convocou as televisões, às 7 da manhã, para uma declaração ao país inteiro. E, sobretudo, para a raia. Construir um Muro..., onde raio teria ele ido buscar a ideia?!
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Já nos devíamos ter dado conta, Marcelo não deixava para o segundo mandato o que podia fazer no primeiro. Marcelo supre, como diria dele uma dona de casa antiga. Aliás, o ritmo marcelista já tinha sido anunciado nesta página de mentiras - que o eram, inverdades, quando escritas mas, muitas vezes, se revelavam mais tarde factos políticos. Há um ano, no folhetim de então, o que Marcelo fazia com o tempo até tinha sido a desculpa de Rui Rio para não ser seu adversário nas presidenciais: "Ele dorme mesmo só três horas por dia." E Rio explicou essas contas: menos cinco horas de sono diárias, em cinco anos, dava 380 dias a mais - num mandato, um ano a mais! "É uma relação preço-custo imbatível", concluíra Rio, derrotado. Às vezes, ser bom contabilista era útil nas decisões políticas.

O grande propósito presidencial anunciado no folhetim deste ano, relembra-se, era: Marcelo queria mostrar aos portugueses, os portugueses. Nada como o mês de lazer, o agosto das praias, do defeso e do bom tempo, para sublinhar que o nosso jeito manso, dos acordos e da pega de cernelha eram para ser assumidos e tomados como qualidades. Essa calmaria aplicada de forma intensa, à Marcelo, conseguia criar uma dialética progressista. Ele era adepto de um marcar passo, seguido de dois passos em frente. Para comparação, notar que Lénine escrevera um livro com o título Um Passo em Frente, Dois à Retaguarda, e era ele um revolucionário...

Foi assim que aproveitando uma data de balanço e perspetivas, o 1 de setembro, o Presidente decidiu turbinar a sua ação. Nos outros anos, era data para a abertura do ano judicial e do fim das transferência no futebol. Em 2016 também foi, mas Marcelo decidiu que seria sobretudo o dia do muro. Ponham capitular na palavra: o Muro. Porque esse passou a ser o assunto, quando ele convocou as televisões, às 7 da manhã, para uma declaração ao país inteiro. E, sobretudo, para a raia. Construir um Muro..., onde raio teria ele ido buscar a ideia?!

O presidente começou por fazer um ponto da situação política nacional. Em outubro, o país votara um impasse. A coligação de direita ganhara, mas não o suficiente. Quanto ao maior partido de esquerda, não só não tinha maioria, como saíra fragilizado por ter menos deputados que o maior partido de direita. E um bom pedaço da esquerda, com dois partidos, tinha por tradição não apoiar governos... Era o que se chamava um beco sem saída.

Chegado a este ponto, Marcelo, que lia solenemente o discurso, tirou os olhos da folha e pousou-os nos portugueses: "Quero contar-vos uma história, de um homem esquecido..." E falou de Luís Sttau Monteiro que, exatamente 50 anos antes, em 1966, tinha escrito uma peça de teatro que foi proibida. A Guerra Santa era a história de um general de direita e de um general de esquerda, que já se confundiam e nem sabiam porque se combatiam. Então, "o general de esquerda, ou de direita, já não me lembro...", contou Marcelo, disse à mulher para fugir porque vinha aí o inimigo. A mulher disse: "É mesmo verdade que eles fazem o que se diz que eles fazem?". E o marido disse: "É". E a mulher disse: "Então, fico." E a guerra santa resolveu-se.

Voltando às páginas do discurso, Marcelo disse que o beco sem saída abriu-se e Portugal fez um governo, que funcionava desde então. "Mal ou bem?", perguntou. E respondeu: "Funciona." Não aborrecemos o mundo com um assunto nosso. O Presidente voltou a olhar-nos: "Ora, isso não acontece em todos os países, verdad?" Foi o imprevisto espanholismo que fez os portugueses suspeitar que não tinham sido tirados da cama para recapitular História.

[destaque:O Rei Filipe VI convidou-o para ir de urgência ao Palácio Real de Madrid. No encontro, Marcelo, embora delicado, foi intransigente: "Os espanhóis pagam o Muro a 100 por cento."]

Marcelo explicou-se. No país ao lado, tinha havido eleições meses antes das nossas, e nada, fizeram outra, sempre nada, e se calhar ia haver mais no Natal. Isso porque era um país com a guerra civil às costas da memória, províncias separatistas, touradas em pontas e extremistas de ódio na liga - enfim, maus costumes. Na condição de vizinho que lhes mandou Futres, Figos e CR7 jovens e importámos os ossos de um Casillas sem reflexos, Portugal achava-se no direito de não aturar a rebaldaria alheia.

A seguir, Marcelo disse a palavra: Muro. Ou Espanha tomava juízo, ou os portugueses faziam um Muro ao longo dos 1214 km da raia. Uma coisa bonita e confortável para encostar as costas, onde os portugueses esperariam os vizinhos para lhes dar lições de convivência. Às 10 da manhã (11 de Madrid), o Presidente recebeu um telefonema do Rei Filipe VI, pedindo-lhe por favor para ir de urgência ao Palácio Real de Madrid. Encontraram-se às 17 e Marcelo, embora delicado, foi intransigente: "Os espanhóis pagam o Muro a 100 por cento."

Não seria necessário. Nessa noite, as Cortes espanholas votaram e os partidos deixaram um governo ir em frente.

Continua amanhã. Leia os episódios anteriores do Folhetim de Verão:

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