Na libertação do constrangimento, Armida conquistou a solidão
Guardada há mais de 230 anos, intocada, na Biblioteca da Ajuda, coube agora à Orquestra Metropolitana a iniciativa de dar em estreia moderna esta opera seria de um desconhecido compositor checo, no entanto, bastante famoso em Itália e além-Alpes sobretudo ao longo da década de 70 do século XVIII e do qual se guarda em Lisboa o maior espólio conhecido da sua obra lírica. Esta Armida que ora vimos procede justamente do final dessa década de 70, tendo estreado no Scala de Milão (que abriu portas em 1778) a 26 de dezembro de 1779, na abertura do que então se convencionava chamar de "Temporada de Carnaval". Apesar de um elenco de luxo (Caterina Gabrielli, uma das maiores sopranos do segundo século XVIII, como Armida; o excecional soprano castrato Luigi Marchesi, rival da Gabrielli, como Rinaldo; o tenor Valentin Adamberger como Idraote), parece que não correu bem e a ópera não mais foi vista desde então.
Esta ópera é um híbrido não apenas em termos epocais, mas inclusivé no plano estrutural e musical. E o título deste artigo liga-se a isso mesmo: ao longo da ópera, Myslivecek vai-se progressivamente libertando dos constrangimentos da opera seria, tal como herdados do passado, para se dirigir a algo não bem definido, mas definitivamente mais plástico, versátil, ágil, arejado. Temos assim um I Ato cristalizado, hierático, rígido e depois, a partir de certo momento no ato II, a trama musical vai-se libertando dos constrangimentos/esquematismos formais e das imposições da tradição. No final, a solidão é a de Armida, no palco escurecido, aproximando-se do único som que ouve (do cravo), junto ao qual ela, tal como a ópera, termina. Belo final, esse, desenhado por Luca Aprea e João Paulo Santos!
Outro ponto é o que se liga à orquestração: por que razão Myslivecek não instrumentou mais árias dando mais relevo aos sopros (madeiras e trompas), se aquelas onde isso acontece ficam invariavelmente a ganhar?
No Pequeno Auditório do CCB, tivemos Joana Seara e Eduarda Melo nos papéis, respetivamente, de Armida e Rinaldo (como é muito raro haver homens com tessitura de soprano, tem de recorrer-se hodiernamente a senhoras para fazer os papéis dos heróis masculinos destas óperas, originalmente escritos para castrati, daí chamar-se papéis travestidos, ou, em inglês: "trouser-roles"). Os restantes papéis foram plurais: o soprano Carla Caramujo fez Fenícia e Lucinda; o mezzo Leila Moreso fez Sidónia e Melissa; o soprano Sónia Alcobaça fez Aronte, Ubaldo e Artemidoro; o tenor Marco Alves dos Santos cantou Idraote, Ódio (figura alegórica) e Cavaleiro Dinamarquês. A parte coral esteve a cargo do Coro Voces Caelestes (3 vozes/parte) e a Orquestra Metropolitana apresentou-se numa constituição barroca: 28 elementos+cravo, com sopros a 2.
A versão semi-encenada foi mais, na verdade, micro-encenada, no que a cenários (basicamente: dois estrados inclinados espelhados e um banco comprido) e adereços diz respeito. Valeu mais a iluminação (boa dramaturgia, inclusive ligando-se aos affetti particulares de determinadas árias), e os figurinos com o costumeiro equilíbrio entre o vistoso e o funcional de José António Tenente. O tratamento dramatúrgico de Luca Aprea (e Stefano Riva) ficou portanto, aquém do que seria desejável ao nível visual nesta obra particular (e, reiteremo-lo, uma opera seria) e disso se ressentiu a performance, que se viu constrangida pela parcimónia de elementos cénicos, adereços, espaço. Houve, no entanto, um trabalho - grande e bem feito - ao nível teatral, interrelacional, gestual (não dizemos movimentacional, porque esse foi limitado pelas limitações - passe o pleonasmo - acima referidas), envolvendo todos os seis intérpretes e essa foi a mais-valia visual da récita.
Os cantores estiveram genericamente a um bom nível, com destaque para o Rinaldo de Eduarda Melo: esplêndida construção dramática, grande prestação vocal. A seu lado, a desafortunada rainha-feiticeira Armida teve de Joana Seara uma incorporação dramática igualmente de muito bom nível, mas ao nível vocal faltou-lhe algo, seja na própria tipologia da voz - timbre, capacidade de projecção e modulação (digamos que a Armida ideal seria algo entre o que vimos e as características vocais de Caterina Gabrielli, tal como em relatos nos chegaram); mas também na própria agilidade, que o papel requer a um grau que ainda não está ao alcance de Joana Seara.
Muito nos agradou a tripla prestação de Marco Alves dos Santos, particularmente impressiva na sua aparição como Ódio. Sónia Alcobaça, Leila Moreso e Carla Caramujo estiveram em bom nível (definindo aquilo que são bons comprimari em ópera), com Sónia um pouco menos que as colegas ao nível vocal e Carla um pouco mais que as demais duas ao nível teatral.
A Orquestra Metropolitana, mesmo com alguns deslizes, demonstrou ao longo de toda a récita um proficiente trabalho de apropriação da sonoridade tão específica (até porque transicional) desta obra e desta linguagem, ao que não será estranho (foi, antes, essencial!) o trabalho do maestro João Paulo Santos: de profundo envolvimento com a partitura, primeiro; de aturado trabalho de ensaio com a orquestra, depois. Parabéns!
E tem cabimento perguntarmo-nos por que razão, tratando-se, como no caso, do nosso património musical (não nacional, mas preservado em espólios nacionais e, para mais, como no caso, com características de unicidade), estas iniciativas não podem (não deveriam?) ocorrer no Teatro Nacional de São Carlos? Como Teatro Nacional que é, deveria ser também, com o devido planeamento, uma casa aberta a produções externas com as características desta. Um palco como o do TNSC, apenas com alguns (poucos) dos meios técnicos de que ali se pode dispor, teria logo aí dado outro embalo, outra respiração a esta (pequena) produção. É uma versatilidade que deveria existir, e o nosso património sairia mais bem valorizado e "defendido".