Na intimidade das forças do Mal

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Decididamente, o neozelandês Andrew Dominik (n. 1967) é um dos mais notáveis "exilados" do cinema made in USA. Em 2007, com a colaboração de Brad Pitt, na dupla condição de ator e produtor, assinou um dos mais espantosos westerns deste nosso século XXI (não há muitos, é um facto...): O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford, retrato de um herói lendário que enfrenta a morte em nome de um bizarro apagamento histórico. Agora, com Mata-os suavemente, de novo com Brad Pitt acumulando as mesmas funções, propõe uma variação sobre as convenções do thriller que contorna a facilidade de "imitação", procurando nas regras do género um dispositivo para desenhar o retrato interior, intimista, de uma América assombrada pelas forças do Mal.

Aliás, tal caracterização deve ser entendida na sua dimensão eminentemente filosófica, uma vez que Dominik se define, aqui, como herdeiro desse "continente negro" do cinema americano que é a obra de Fritz Lang (1890-1976): sob a aparência da ordem e a claridade das boas consciências, há todo um tecido de impulsos malignos que fragiliza os indivíduos e a coletividade. Que o filme encene tudo isso tendo por pano de fundo a campanha eleitoral de 2008, até à eleição de Barack Obama, eis a calculada perversão dramática: dir-se-ia que a crueza da ação se combina com as notícias lançadas pelos televisores para gerar um ambiente de insólito, por vezes comovente, vazio existencial. Na prática, o essencial passa-se, não em tiros ou perseguições, mas no fascinante labirinto dos diálogos. Nestes tempos de tanta aceleração gratuita, eis uma boa lição narrativa: as palavras definem uma peculiar forma de ação e, por vezes, circulam à velocidade da mais radical dúvida moral.

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