Na igreja onde o Papa foi batizado, Milei é um "falso profeta"

O candidato de extrema-direita chamou "burro", "comunista" e "representante do maligno" a Francisco que disse, por sua vez, temer "salvadores da pátria". Na histórica Basílica María Auxiliadora y Don Carlos, em Buenos Aires, e em toda a Argentina católica o caso teve forte repercussão
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"Não quero falar desse Javier Milei aqui, defronte da cruz, defronte de Jesus Cristo, se quiseres, vamos lá para fora", diz Ana Maria Morales, 65 anos, ao afastar a reportagem do DN para o pátio exterior da Basílica María Auxiliadora y San Carlos, o templo onde um tal de Jorge Mario Bergoglio, hoje Papa Francisco, foi batizado no dia de Natal de 1936, uma semana depois de nascer.

Já longe da cruz e do olhar d"Ele, dona Ana, reformada, conta que está "farta até à raiz dos cabelos do kirchnerismo", referindo-se à corrente, mais uma, do complexo e heterogéneo peronismo, protagonizada por Nelson e Cristina Kirchner, ambos ex-presidentes da Argentina, o primeiro falecido em 2010, e a segunda a atual vice-presidente de Alberto Fernández.

Farta do kirchnerismo, a dona Ana seria, pois, uma eleitora potencial de Milei, uma vez que o rival, Sergio Massa, embora tente descolar-se da imagem controversa do casal Kirchner, é o atual ministro da Economia, logo, o exemplo acabado de político governista, de candidato oficial.

"Duvido que vote nele, o mais provável é votar em branco, mas nesse pibe que insultou o Papa, jamais", garante. O "pibe", expressão que significa "miúdo", não é tão "pibe" assim: Milei tem 53 anos, mais dois que Massa, mas, como só chegou à política há dois, usa o cabelo despenteado, grita muito e circula de motosserra em punho a dizer que vai cortar a gordura do estado, dá ares de criança mal comportada num mundo de adultos.

O mau comportamento, entretanto, extrapolou as fronteiras da política e chegou ao território do sagrado: Milei acusou o Papa Francisco de ser "o maligno na Terra", de "promover o comunismo" e de ser "nefasto" e "imbecil".

"Burro, burro, ignorante, desastroso, canhoto [no sentido de esquerdista], cultivador do modelo baseado no ódio, na inveja e no ressentimento", afirmou o candidato do La Libertad Avanza, o mais votado nas PASO (primárias, abertas, simultâneas e obrigatórias), em agosto, segundo classificado na primeira volta de outubro e líder, por escassa margem, das sondagens para o sufrágio decisivo de domingo.

"O Papa Francisco parece-me um dos piores e mais desastrosos personagens (...) Ele, como jesuíta, promoveu o comunismo, que foi um fracasso económico, social e cultural", disse noutra ocasião.

"O que é justiça social? É inveja", sublinhou num programa de televisão há três anos. E continuou: "A inveja é pecado capital, o idiota que está em Roma, que defende a justiça social, deveria ser informado de que é um roubo contra os mandamentos".

A uma publicação de Francisco na rede social X, ex-Twitter, em 2018 respondeu "você que gosta da merda da justiça social, seria bom se começasse a distribuir as riquezas do Vaticano aos pobres". "Dedicado a ti, canhoto filho da puta que pregas o comunismo em todo o mundo, és o representante do maligno na casa de Deus, viva a porra da liberdade", comentou noutra ocasião. "E Jesus não pagava impostos", completou.

O Papa, entretanto, vem enviando recados, necessariamente mais subtis, para Milei. "A extrema-direita sempre se reconstrói, é o triunfo do egoísmo sobre o comunitarismo", disse em março, a propósito das eleições. "Fico muito assustado com esses salvadores da pátria sem histórico na política partidária".

"Tenho muito medo de flautistas de Hamelin porque são encantadores: se fossem de serpentes, não me importaria, mas são encantadores de pessoas e terminam afogando-as", afirmou, noutra ocasião, à agência argentina de notícias Telám, referindo-se ao personagem do conto dos irmãos Grimm que hipnotizou ratos e crianças. "Há quem acredite que é possível sair de uma crise dançando ao som da flauta, com salvadores que surgiram de um dia para o outro, mas não: a crise deve ser assumida e superada, sempre para cima".

"Às vezes, quando me escutam dizer as coisas nas encíclicas sociais, dizem que o Papa é comunista. Não é isso. O Papa segue o Evangelho e diz o que diz o Evangelho. Sei que falam coisas sobre mim mas, pela minha saúde mental, eu ignoro e rezo por eles", rematou.

A Igreja Católica argentina saiu em defesa do Papa numa missa em Buenos Aires em frente à paróquia da Virgem dos Milagres de Caacupé, na Villa 21-24, no bairro de Barracas, com 1000 fiéis a segurar fotos de Francisco e faixas com a inscrição "em solidariedade ao Papa e aos pobres".

O padre Pepe Di Paola disse serem "indignos de um candidato" os ataques de Milei a Francisco. "Ele diz "a merda da justiça social" mas essa "merda" faz parte do Evangelho, da doutrina social da igreja, em última análise, o ataque atinge as raízes da nossa fé e do humanismo porque a justiça social não começa no ressentimento e na inveja mas sim na compreensão do que significa liberdade, que não é apenas fazer o que se quer".

Ao contrário de dona Ana, é de dentro da igreja mesmo, de frente para o Cristo Crucificado, que a enfermeira Karina Basso diz ao DN com todas as letras que Milei "é um falso profeta" e "um excêntrico que não tem graça nenhuma e está mais para criminoso do que outra coisa".

O tom revoltado de Basso, que deve votar em Massa "sem grande prazer, mas por ser um mal muito menor", baixa de volume à medida que os preparativos para a sempre aguardada missa na Basílica María Auxiliadora y San Carlos se aproximam.

Situada no centro de Buenos Aires, a Basílica, um edifício monumental erigido na primeira década no século passado pela Ordem dos Salesianos, não lançou apenas a carreira eclesiástica do bebé Jorge Mario, batizado no local 33 anos antes de se tornar sacerdote, 56 anos antes de se tornar bispo, 65 antes de se tornar cardeal e 77 antes de se tornar o Papa Francisco. A Basílica Auxiliadora lançou também a carreira musical de Carlos Gardel, um dos principais mitos argentinos, embora uruguaio, considerado o pai do tango: ele foi membro do coro da igreja, em 1901, aos 11 anos, como regista placa no local.

No final da missa, já a caminho de casa, Horacio González, 73 anos, reformado, suspira fundo antes de falar de Milei. "Eu sou de direita", assume, "fiquei aterrorizado com as notícias sobre o que ele disse sobre o Papa, nenhum católico, da esquerda à direita gosta de ouvir falar assim do pontífice, seja ele argentino ou não, mas vejo as coisas desse modo: política é política e fé é fé, devemos separar e esquecer". À pergunta se, então, vota Milei, Horácio ergue as sobrancelhas e tomba a cabeça para o lado como quem diz "que remédio...".

Dona Ana e Karina, pelo contrário, dizem "jamais". Carmen, funcionária da igreja que se recusou a dizer o apelido, corrobora: "no início, por não haver dinheiro para nada, dada a crise económica agravada por este governo, até achei o Milei interessante mas vou acabar votando no Massa, os Kirchner, pelo menos, ajudaram muito os pobres".

Para Carlos De Angelis, professor de Sociologia da Opinião Pública da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires, "se é verdade que muitos argentinos, de direita, se queixam de que, com Francisco, o peronismo chegou ao Vaticano, por outro, ouvir de um candidato que o Papa representa o maligno, causa uma enorme rejeição".

"Nem tanto em Buenos Aires, mas sobretudo no norte argentino, onde as tradições religiosas são mais quotidianas, aliás, apoiantes iniciais de Milei, por questões mais restritas à economia, vêm ficando progressivamente estupefatos por ele achar que tudo por ser mercantilizado, incluindo armas, crianças, órgãos, esta questão com o Papa entra nesse contexto de estupefacção", conclui De Angelis.

No último debate antes das eleições, Milei, o candidato da coligação La Libertad Avanza, foi confrontado pelo rival, Massa, da Unión Por La Patria, com os ataques ao Papa Francisco. "Se isso deixa você e o povo da Argentina tranquilos, não tenho problema nenhum em me desculpar com o Papa, quando nos equivocamos, pedimos desculpas e acabou", disse o líder do Partido Libertário.

Na sequência acrescentou que, se eleito, está disposto a "receber o papa na Argentina". Desde que se tornou o líder da igreja católica, há dez anos, Francisco ainda não visitou o seu país natal. Ele chegou a dizer que pretende ir em 2024, mas, dado o contexto eleitoral, ainda não confirmou.

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