Na fronteira com a Colômbia, onde manda a guerrilha

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Perguntado se podemos seguir em frente, o tenente Marrero, de camuflado da 2.ª Companhia de Cazadores, diz com aquela ironia que os soldados profissionais gostam de mostrar a civis intrometidos: "Pelo artigo 50 da Constituição da Venezuela, os cidadãos podem andar em todo o território nacional..." A um quarto de hora dali, fica Nula, a fronteira com a Colômbia. De ambos os lados, é terra fértil, de pastos que ganaderos tiram proveito para engordar os seus bois-zebus.

Estamos nos limites de dois estados venezuelanos, Táchira e Apure, acabamos de passar na povoação, Caparo, onde os Barreto, o pai David, de 36 anos, o filho também David, de 11, e os sobrinhos, Alberto e José, ambos garotos, foram sequestrados. Foram levados para as montanhas San Camilo, na cordilheira dos Andes que corre a Sul. Os três rapazes foram libertados, ontem em La Victoria, estado de Apure, mas David Barreto continua nas mãos dos sequestradores. Na floresta, os Barreto passaram quase duas semanas, dormindo em cambuches, em hamacas, redes amarradas aos troncos e protegidas por plásticos. Os dois irmãos, sobrinhos de David Barreto, falharam a comunhão que estava marcada para domingo passado. A família, em San Cristóbal, a capital do estado de Táchira, aguardava, com todos os telemóveis à mão. Mas seja o patriarca, José Barreto Cardoso, de Ponte de Lima, na Venezuela há 50 anos, rico construtor civil, ou os outros Barreto, ninguém, é essa a tese oficial, recebeu ainda um telefonema dos "plagiarios", como se chama aqui aos sequestradores.

Ainda ontem, os jornais locais punham o quarto Barreto no fim da lista, publicada diariamente, dos 24 cidadãos de Táchira na mão de sequestradores. A lista é encimada por Carlos Rosales, sequestrado já fez cinco anos em Julho.

Em El Piñal, a última grande povoação antes da fronteira, no quartel militar, o jipe Toyota enlameado até meia porta serve de prova a um sargento: "Estamos em operações a quatro horas daqui." Julga-se que, das montanhas, os sequestradores queriam passar os reféns para a Colômbia. No quartel não há fotos dos Barreto, mas têm sido distribuídas fotos dos prováveis sequestradores.

Como o DN já noticiou na 4.ª feira, cinco dos sequestradores iniciais estão já presos em San Cristóbal. No quadro de honra do quartel de El Piñal, está a linha de comando, com fotos, começada pelo Presidente Hugo Chávez e, logo em terceiro lugar, o coronel Hebert Aguilar, peito constelado de medalhas, que anunciou, ontem, a libertação dos três rapazes Barreto. No átrio, está a frase "Pátria, Socialismo ou Morte", encimada por uma estatueta de Nossa Senhora da Neves. Esta espécie de altar é enquadrada por sete colunas de altifalantes, presume-se que recuperadas a contrabandistas. À porta, outra frase, cheia de boas intenções: "Armemos la vida sin armas."

Depois de El Pinãl, pela estrada para a fronteira, são várias as barragens policiais ou militares, numa demonstração de que não se acredita muito nos slogans piedosos. A meia hora da fronteira, seis homens do Cicpc, a polícia que tem um destacamento anti-sequestro, vestidos de negro e com pistola amarrada à coxa, um com uma velha automática Uzi, fazem a última barreira policial. Estavam encostados a uma venda de bebidas e deixavam passar os carros até à chegada do jornalista. Depois, desataram a mandar parar tudo e até a fazer descer toda a gente de um decrépito autocarro. Um condutor baixa o vidro fumado e com uma santa ricamente pintada e espanta-se: "Que se pasa?" O polícia obriga-o a mostrar a caixa traseira.

Um quarto de hora depois é a última barragem do exército, a do tenente Marrero. "Pelo artigo 50 da Constituição da Venezuela, os cidadãos podem andar em todo o território nacional..." E ia o jornalista a cumprir a constituição, quando o tenente abanou a cabeça: "É melhor não", ordena.

O último quarto de hora de território venezuelano já não pertence às autoridades venezuelanas. Há dois meses, um pelotão do exército, em Zulia, o estado vizinho, a Norte, foi desarmado por um grupo fardado de verde oliva, das FARC, os terroristas colombianos. O chefe do grupo telefonou a Alcalá Cordones, comandante da venezuelana 11 Brigada, sitiada em Maracaibo, a protestar por a patrulha, embora em território venezuelano, ter passado as coordenadas combinadas com a guerrilha. O tenente do Batalhão de Blindados Bravos de Apure e o seu pelotão foram devolvidos aos seus, mas sofreram sanções. No seu posto, na estrada para Nula, em Apure, o tenente Marreros sabe que há pedaços do seu país onde o seu exército não manda e foi inflexível: "É melhor não..." |

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