Na floresta amazónica, entre os seus guardiões
A 22 de Abril de 1500, aportou na terra nova que "ora nesta navegação se achou" a frota comandada por Pedro Álvares Cabral. Poucos dias depois, o escrivão que seguia na missão, Pêro Vaz de Caminha, dava ao rei D. Manuel I as primeiras informações conhecidas sobre os povos que habitavam a terra a que mais tarde seria dado o nome de Brasil: "Dali avistamos homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos, por chegarem primeiro. Então lançamos fora os batéis e esquifes, e vieram logo todos os capitães das naus a esta nau do Capitão-mor, onde falaram entre si. E o Capitão-mor mandou em terra no batel a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou de ir para lá, acudiram pela praia homens, quando aos dois, quando aos três, de maneira que, ao chegar o batel à boca do rio, já ali havia dezoito ou vinte homens."
Mais de 500 anos decorridos sobre esse primeiro contacto, a 21 de abril próximo, os descendentes desses povos originais do Brasil "chegam" ao Palácio Anjos, em Algés, através dos retratos feitos pelo fotojornalista Ricardo Stuckert, reunidos na exposição "Povos Originários, Guerreiros do Tempo". Como o próprio explica ao DN: "Esta exposição traz uma série de imagens sobre os povos originários brasileiros que tenho fotografado desde 1997. As fotografias vão possibilitar que o público conheça os verdadeiros guardiões das florestas e também reflita sobre a importância de preservar essas populações e as terras habitadas por elas. Espero mesmo que a exposição promova uma reflexão sobre a importância dos indígenas para o nosso planeta."
Este fascínio tomou Ricardo Stuckert na primeira viagem que fez à Amazónia, em 1997. "Nessa altura visitei uma comunidade Yanomani, no Amazonas. Fiquei muito impactado. A Amazónia é um lugar sagrado. Abriga a maior floresta tropical e a maior bacia hidrográfica do mundo. Precisa e deve ser respeitada e cuidada por todos nós. Precisamos, sobretudo, protegê-la, bem como aos povos que vivem nela. Indígenas, ribeirinhos, seringueiros. Acredito que esta é uma luta constante e de todos nós." Na sua retina ficou gravada a imagem da jovem yanomani, Penha Goes: "Fiz-lhe um retrato a preto e branco, com o rosto pintado e os olhos fitando diretamente a câmara. Aquela imagem ficou na minha memória." Quase 20 anos depois desse registo, Ricardo decidiu voltar à aldeia para tentar reencontrar Penha. A menina de olhar intenso dera lugar a uma mulher madura, mãe de seis filhos, "que fez enfermagem e passou a cuidar da aldeia. Ela também atua como tradutora Yanomani no Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI), no Amazonas. Depois dessa viagem, decidi documentar os povos originários e comecei a fazer uma série de viagens aos mais diversos lugares do país para fazer estes registos. Cada aldeia que eu visitei foi um aprendizado." Para o fotojornalista, a simplicidade com que vivem estes povos é uma forma de sabedoria: "Eles ensinam-nos a importância de viver em comunidade, de respeitar e preservar a natureza."
Nos anos que se seguiram a esse primeiro contacto, Stuckert fotografou outros povos como os Ashaninka, os Yawanawa ou os Kalapalo, mas a sua motivação não é unicamente estética. Ao longo das sucessivas viagens que fez, admite ter assistido a uma gradual, mas acelerada, degradação das condições de vida nessas aldeias: "Piorou muito. Muita devastação, garimpo ilegal e tantos outros problemas. Houve uma mudança drástica desde 1997, quando comecei a fotografar os indígenas. No entanto, a forma como eles enfrentam tantas adversidades me surpreende. O respeito pela natureza, por exemplo, pela floresta e por tudo que nela habita continua ali. Os indígenas sabem como ninguém a importância de cuidar do meio ambiente." Esta situação piorou muito durante os anos da Presidência de Jair Bolsonaro: "Olha a situação dos Yanomami hoje. É inconcebível o que está acontecendo. Eles sofrem com desnutrição crónica, malária, falta de atendimento médico. Desde 1997, quando comecei a fotografar os povos originários, jamais presenciei uma situação assim."
Com mais de 30 anos de fotojornalismo (passou por vários jornais e revistas, entre os quais O Globo e Veja), Stuckert foi o fotógrafo oficial do presidente Lula da Silva nos primeiros dois mandatos (2003-2010), posição a que voltou com a nova reeleição. Trata-se de uma parceria de longa duração que não lhe permite grande sossego: "O presidente Lula não pára e trabalha muito. São mais de 20 anos acompanhando o dia-a-dia dele. Entre 2003 e 2011, acompanhei o presidente nas suas mais de 50 viagens mundo afora. Depois do governo, continuei acompanhando. E, agora, pela terceira vez, ele retorna à presidência e eu estou para registar este momento tão importante para a história do Brasil. As fotografias que faço e fiz do presidente ao longo de todos esses anos são muito espontâneas. Não dá para pensar muito."
Diretor de fotografia do documentário de Petra Costa, Democracia em Vertigem (nomeado para o Óscar da sua categoria), sentiu a responsabilidade de dar a conhecer ao mundo o que se passava em Brasília nos anos que conduziram à eleição de Bolsonaro. Em entrevista à revista Metropolis, aquando da nomeação para o Óscar, disse: "Quando teve a votação do impeachment na Câmara, a Petra estava no plenário filmando a Dilma. Eu, filmando o Lula. De certa maneira, o filme não teve roteiro. O roteiro é a política"
Ricardo Stuckert é uma mente irrequieta, que cedo encontrou na fotografia a forma de se expressar. Talvez nem pudesse ser de outro modo já que, no Brasil, o seu apelido é sinónimo de fotojornalismo e fotografia documental: "Na minha casa, sempre respirámos fotografia", diz-nos. "Sou a quarta geração de uma família grande de fotógrafos. Depois da Primeira Guerra Mundial, meu bisavô, Eduardo Roberto Stuckert, embarcou de Lausanne, na Suíça, em direção à América do Sul, sem destino definido. Na primeira parada, encantou-se com Paraíba e por lá ficou. Além de fotógrafo, era pintor e tradutor. Passou o primeiro ofício aos filhos, depois aos netos. É uma tradição familiar. Na minha família, entre vivos e mortos, são 33 fotógrafos."
Ricardo foi influenciado desde cedo pelo pai, Roberto Stuckert, que foi fotógrafo oficial do general João Figueiredo, quando Ricardo ainda tinha 12 anos. Aos 13, aprendeu o processo de revelação do filme fotográfico com o pai, que abriu uma agência e montou um laboratório de fotografia dentro de casa. Aos 17 anos, Ricardo resolveu seguir a carreira do pai e fez um curso na Escola Brasiliense de Fotografia. Nunca se arrependeu: "Foi uma experiência fantástica. Ao todo, três da família foram fotógrafos de chefes de Estado: meu pai Roberto Stuckert acompanhava o general João Batista Figueiredo, que governou entre 1979 e 1985; meu irmão, Roberto Stuckert Filho, Dilma Rousseff. Meu pai foi fotógrafo do último presidente militar; eu, do primeiro presidente operário; meu irmão, da primeira presidenta. São três momentos-chave da História do Brasil."
A exposição "Povos Originários, Guerreiros do Tempo" pode ser vista até 16 de julho, de terça-feira a domingo, entre as 11.00 e as 18.00.
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