Na coutada dos tribunais

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Desde agosto de 2015, as "propostas sexuais não desejadas" são crime, com pena de um ano - três se a vítima for menor de 14. Mas foi em julho, um mês antes da entrada em vigor da nova lei, que uma mulher de São Pedro do Sul ouviu de um homem, no meio da rua, "Comia-te toda! És toda boa! Pagavas o que me deves!" e decidiu apresentar queixa. Não existindo ainda um tipo criminal específico, optou pelo crime de injúria (até três meses de prisão). O resultado foi notícia na semana passada: o Tribunal da Relação de Coimbra considerou, confirmando a posição do tribunal inferior e do Ministério Público, que os factos não tinham "dignidade penal" e que nem valia a pena haver julgamento. O mesmo tribunal que em 2006 condenou um homem por chamar "cromos" a dois guardas da GNR, certificando que não era o significado da palavra que era importante para a consumação do crime de injúria mas a intenção de achincalhar e ofender, caracterizou os dichotes lançados à mulher como "simples má educação", porque, explicou, "injuriosa" é a "ação ou expressão que seja apta a pôr em causa a autoestima ou a fama do sujeito".

Qual seria, então, a intenção do homem, se não era achincalhar e ofender? Eis algo em que seria interessante conhecer o pensamento dos juízes - o seu juízo, vá. Gritar a uma mulher, no meio da rua, que se quer ter sexo com ela e que com isso ela pagaria o que deve não é de molde a pôr em causa a sua autoestima? Talvez o contrário, então, seja adequado a esse efeito? Se gritasse "és toda má" e "não te comia nem que me pagassem" já podia ser crime, ou dependia do aspeto da mulher?

Não, não precisamos de invocar o acórdão do Supremo dos anos 1990 no qual se considerava que duas estrangeiras violadas partilhavam a culpa com os violadores, por se "aventurarem na coutada do macho latino"; a jurisprudência portuguesa não para de nos certificar que as mulheres não têm, para os tribunais, a mesma dignidade que os homens. E que se o país é signatário de uma convenção internacional que obriga o Estado - incluindo os tribunais - a combater a violência contra as mulheres, e dentro dela, especificamente, o assédio sexual verbal e o ambiente intimidador, humilhante e inseguro que este cria (convenção cuja transposição para o ordenamento jurídico português resultou no novo crime de importunação sexual), três juízes portugueses de um tribunal superior, pelos vistos, não se sentem nada obrigados. Nem os obrigará a cogitar sobre causas e efeitos o inquérito britânico nesta semana publicitado no The Guardian: 36% das meninas entre os 7 e os 10 dizem que as fazem sentir que a coisa mais importante nelas é a sua aparência; 40% não se sentem suficientemente bonitas e uma em seis tem vergonha do seu corpo. Às tantas o que lhes falta, pensarão os nossos juízes - e juízas, não esquecer -, é mais homens a gritar-lhes na rua que são todas boas.

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