Na corrida ao espaço o último milionário a chegar é um ovo podre

O patrão da Virgin, Richard Branson, antecipou-se a Jeff Bezos ao embarcar na sua primeira viagem suborbital no domingo passado. O fundador da Amazon vai já na terça-feira e terá o consolo de subir mais alto que o rival, ultrapassando a Linha de Kármán.
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Serão oito da manhã de terça-feira, 20 de julho, quando o homem mais rico do mundo arrancar no sistema de foguetão e cápsula New Shepard em direção ao espaço. Jeff Bezos, fundador da Amazon e da companhia espacial Blue Origin, levará consigo o irmão mais novo Mark Bezos, a quase-astronauta de 82 anos Wally Funk e um rapaz de 18 anos, Oliver Daemen, que foi escolhido depois de o anónimo que pagou 28 milhões de dólares para vencer o leilão de um bilhete de ida e volta ter pedido para remarcar a viagem.

É a primeira viagem suborbital com passageiros da Blue Origin e um feito tremendo para Jeff Bezos, que fundou a empresa em 2000, muito antes de Richard Branson e Elon Musk se meterem nesta indústria. Mas Bezos perdeu a oportunidade de ser o primeiro do trio de multimilionários a subir ao espaço, quando Richard Branson se antecipou e embarcou na VSS Unity no passado domingo, 11 de julho, uma jogada que apimentou a suposta guerra pela corrida ao espaço que está em curso. Branson tornou-se na primeira pessoa a embarcar numa nave espacial que ele ajudou a construir e financiar.

Apesar de serem dois milionários a meterem-se em cápsulas espaciais para viagens suborbitais com enorme mediatismo, há diferenças entre ambos. A designação suborbital aplica-se porque, embora ambos os veículos ultrapassem uma fronteira invisível para o espaço, nenhum será veloz o suficiente para se manter por lá.

A questão da fronteira é uma das diferenças relevantes entre estas viagens. No domingo, Richard Branson e a sua tripulação subiram até aos 80 quilómetros de altitude, a distância que o exército norte-americano considera como sendo o início do espaço.

Mas esta é uma altitude inferior à internacionalmente reconhecida Linha de Kármán, a 100 quilómetros, a qual será ultrapassada pela New Shepard de Jeff Bezos na terça-feira.

O magnata, que se recusa a admitir rivalidade com Branson, tem apontado isso mesmo em comparação com a Virgin.

"Sempre tivemos como missão que queríamos voar acima da Linha de Kármán, porque não queríamos ter nenhum asterisco ao lado do nosso nome sobre se somos ou não astronautas", disse Bezos, em 2019. "Isso é algo que eles vão ter de endereçar, na minha opinião", reforçou.

Branson não pareceu minimamente preocupado com a altitude exata em que o espaço começa. Num voo que durou cerca de 90 minutos, porque o sistema espacial da Virgin Galactic funciona de forma diferente da Blue Origin e da SpaceX de Elon Musk, a transmissão ao vivo mostrou um milionário extático.

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"A todos os miúdos por aí, eu fui um dia uma criança com um sonho, olhando para cima para as estrelas", disse Branson. "Agora sou um adulto numa nave espacial. Se nós conseguimos fazer isto, imaginem o que vocês podem fazer."

Partindo do Spaceport America no Novo México, o sistema da Virgin não fez um levantamento vertical, como os foguetões da Blue Origin e SpaceX. Tem um formato com asas que é lançado para o ar por uma nave-mãe, cujo levantamento se assemelha ao de um avião tradicional. Quando o sistema SpaceShipTwo atinge a altitude necessária, passado cerca de uma hora, a cápsula VSS Unity é libertada e atinge o espaço suborbital. No domingo, os passageiros experimentaram a ausência de gravidade durante alguns minutos até o veículo planar de volta para a Terra.

"Estamos a mudar a forma como a humanidade vê o espaço. Pegámos no impossível e estamos a torná-lo no inevitável", disse um dos responsáveis da Virgin Galactic, num vídeo pré-gravado que foi transmitido aos que assistiram ao voo em direto. A produção, bem ao estilo de Sir Richard Branson, foi grandiosa. O comediante Stephen Colbert foi o anfitrião do evento virtual e o músico Khalid aproveitou para estrear ao vivo a sua nova música, "New Normal."

A façanha de Branson foi anunciada pouco depois de Jeff Bezos ter revelado que ia embarcar no seu voo inaugural a 20 de julho. O britânico chamou-lhe "uma coincidência incrível e maravilhosa" e garantiu que nunca viu isto como uma corrida. Na madrugada antes do voo, Branson publicou uma foto ao lado de Elon Musk, que foi lá pessoalmente desejar-lhe boa sorte. O próprio Jeff Bezos, nunca admitindo qualquer ressentimento, publicou uma foto de Richard Branson no seu Instagram para lhe desejar "um voo seguro e bem-sucedido." Um emaranhado de relações públicas e marketing que não retira peso ao momento histórico: as viagens turísticas ao espaço estão cada vez mais próximas.

Branson, Bezos e Musk estão a investir milhares de milhões de dólares nas suas startups espaciais há vários anos. Segundo consta, a Virgin Galactic já ultrapassou as 600 reservas de bilhetes de passageiros que querem ir ao espaço, pagando cerca de 250 mil dólares cada. Planeia iniciar as viagens comerciais já em 2022 e a expectativa é que os bilhetes se tornem mais baratos, em torno dos 40 mil dólares.

A SpaceX ainda não falou de preços, mas planeia enviar um grupo de civis para órbita em setembro. No caso da Blue Origin, espera-se que os bilhetes custem em torno de 200 mil dólares. Os números podem ser inacessíveis para a esmagadora maioria dos consumidores, mas isso não estraga o apelo desta guerra das estrelas. São três multimilionários empenhados em democratizar o acesso ao espaço com um impacto potencialmente decisivo, como analisa o especialista português na indústria espacial Ricardo Patrício, ex-CEO da Active Space Technologies e atual responsável de desenvolvimento de negócio da norte-americana Made in Space na Europa.

"Desde logo é evidente que o envolvimento de Bezos ou Branson ou Musk no setor espacial promove uma muito maior exposição ao público, e por outro lado arrasta um interesse de muitos outros investidores", disse o especialista ao DN.

Patrício sublinhou que há dois fenómenos relativamente recentes no setor espacial com bastante relevância. Um é a quantidade de startups que estão a lançar pequenos satélites e serviços baseados em infraestruturas espaciais. O outro é o número de empresas que irão ser públicas ainda em 2021 recorrendo aos SPAC (special-purpose acquisition company), como é o caso da Redwire Space. "Ainda há uns anos ninguém pensaria em imprimir peças em 3D no espaço e montar estruturas, muito maiores do que as infraestruturas que temos hoje no espaço, recorrendo a braços robóticos", sublinhou o especialista.

DestaquedestaqueBranson, Bezos e Musk estão a investir milhares de milhões de dólares nas suas startups espaciais há vários anos.

Tudo está a avançar de forma galopante. "É claro que estes bilionários não são responsáveis por isto tudo", ressalvou Patrício, referindo que eles próprios são beneficiários de um momento propício no setor. É que há agora um alinhamento entre estratégias nacionais e das agências espaciais - que se focaram em parecerias público-privadas - e uma vontade das startups em terem abordagens disruptivas face ao mercado espacial clássico, lançando produtos mais rapidamente, com tecnologias terrestres muito mais baratas, com retornos mais rápidos, mesmo assumindo os riscos de falha e perda dos ativos lançados.

"A participação de figuras como estes bilionários arrastam mais financiamento, mais interessados na economia do espaço, mais concorrência, mais desenvolvimento de tecnologia", frisou Ricardo Patrício. "Porque realmente eles investiram e permitiram o investimento em empresas espaciais e em desenvolvimento de tecnologias", continuou. "Não deixa de ser curioso que os três estão a trabalhar no acesso ao espaço, com os seus lançadores, e com ênfase grande na componente da reutilização." Ou seja, mesmo que os preços sejam incomportáveis pela maioria da população neste momento, estamos mais próximos de um futuro com turismo espacial.

"Havendo novas tecnologias nos lançadores, baixando o custo por quilo que é lançado para o espaço, acho que se pode dizer que essas figuras têm o seu papel reconhecido no acesso ao espaço e em tornar a exploração espaciais mais acessível e mais apetecível", opinou Ricardo Patrício.

Num vídeo emocional publicado em junho no Instagram, Jeff Bezos anunciou que ia embarcar na New Shepard e concretizar um sonho. "Ver a Terra do espaço muda-nos, muda a nossa relação com o planeta e a humanidade", disse, escrevendo na legenda que sonha em viajar para o espaço "desde os cinco anos." Dos três milionários em busca das estrelas, Bezos foi o que começou mais cedo. Demorou duas décadas a chegar a este ponto e agora que deixou o cargo de CEO da Amazon, para se focar na exploração espacial, terá a oportunidade de ver o que apenas uma elite de astronautas pôde experimentar. Nem a escolha de 20 de julho foi ao acaso: é o 52º aniversário da aterragem na Lua da Apollo 11.

O sistema New Shepard é reutilizável, abrindo caminho para o turismo espacial. Na terça, partirá do Launch Site One, numa zona remota do Texas ocidental, para uma viagem que durará apenas 11 minutos. Possivelmente não será um passo gigante para a Humanidade, mas contribuirá para o início de uma nova era de exploração espacial.

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