Que se passa? Que vemos neste fotograma? Nada de nada, dirá o jovem espectador de cinema que passou o tempo a colocar "likes" no seu telemóvel, saindo com a cabeça a abanar de uma qualquer barulheira de super-heróis, ignorando tragicamente - para sua própria tragédia, entenda-se - que um filme não é uma avalanche de imagens descartáveis e ruídos ensurdecedores..Que se passa, realmente? Que história passa por este fotograma? Ela chama-se Maud e, depois de um jantar e uma noite de conversa em sua casa, acabou por acolher um dos convidados, Jean-Louis. Assim mesmo: acolheu-o, por fim, na sua cama... Nada aconteceu, dirá o mesmo incauto jovem sugado pelo ecrã do telemóvel, desamparado e desconhecedor dos seus limites, correndo o risco de se confundir com o espectador viciado em novelas ou o leitor obcecado pela imprensa dos "famosos". Assim é a miséria cultural dos nossos dias: se estão na mesma cama e não houve um qualquer evento genital a justificar registo, então nada aconteceu....Supondo que, aqui chegados, pelo menos dois terços dos leitores já me abandonaram, desisto do meu sermão cinéfilo, reconhecendo a sua impotência. Lembro apenas o mais importante: este é um momento de A Minha Noite em Casa de Maud, obra-prima de 1969, realizada por Eric Rohmer, um dos nomes de eleição da Nova Vaga francesa (reposto há cerca de um ano entre nós, o filme está actualmente disponível na plataforma Filmin)..Ela é Françoise Fabian, presença tão discreta quanto admirável na história do cinema francês das últimas seis décadas. Ele é Jean-Louis Trintignant, corpo sempre habitado por um misto imponderável de transparência e mistério, para alguns gerado nas zonas mais recônditas de uma invencível e muito juvenil timidez - soubemos da sua morte no dia 17, contava 91 anos..A Minha Noite em Casa de Maud pode servir de emblema do labor de Trintignant. Porquê? Porque aquilo que Rohmer coloca em cena é a poderosa erotização da palavra. A noite de Jean-Louis em casa de Maud é, afinal, um teatro de desejos e razões em que a exigência moral do catolicismo que ele professa se confronta, ou melhor, literalmente dialoga com a inteligência ágil e livre dela. Se quisermos jogar com o uso corrente das palavras, diremos com desconcertante objectividade: Jean-Louis não dorme "com Maud", mas acaba por dormir "na cama dela"..Poderíamos desviar o assunto para a cegueira cinéfila de alguns feminismos contemporâneos que insistem em proclamar que, no cinema, precisamente, as personagens de mulheres singulares e complexas são uma invenção de anos recentes, pós-#MeToo - continuo sem perceber o que é que essa ignorância de mais de 100 anos de história do cinema traz de saudável ao pensamento das relações masculino/feminino..O que podemos contemplar e, de alguma maneira, questionar através da composição de Trintignant é uma outra dimensão, de uma só vez artística e filosófica, que os mesmos feminismos raras vezes enfrentam (contaminando muitos discursos de homens). A saber: não faz sentido problematizar o que quer que seja de feminino como se do "outro lado" mais não houvesse do que uma tribo unificada de personagens masculinas, obrigatoriamente esquemáticas e indiferentes ao território das mulheres..Corrigindo: esta formulação "territorial" nem sequer faz sentido face à riqueza temática e formal do cinema de Rohmer. Sim, é verdade que a sua obra lida com o aparato moral em que, conscientemente ou não, vivem homens e mulheres (A Minha Noite em Casa de Maud, recorde-se, integra uma série, realizada entre 1963 e 1972, de "Seis Contos Morais"). Mas não é menos verdade que aquilo que ele filma é a insuperável estranheza do "outro lado", na certeza de que nada disso se esgota ou confunde apenas com a existência de um "outro sexo"..Ao reconhecimento de que "tudo é sexual" (sob o signo de Freud, ma non troppo), Rohmer acrescenta uma nota de ironia e distanciamento, levando-nos a reconhecer que o sexual não esgota o "todo" da experiência humana. E é nesse cruzamento entre a evidência dos corpos e a imponderabilidade do acto de pensar que o seu cinema integra o maravilhoso pudor de um actor como Trintignant..Vimos esse mesmo pudor em filmes tão diversos como O Conformista (Bernardo Bertolucci, 1970), Finalmente Domingo! (François Truffaut, 1983) ou Três Cores: Vermelho (Krzysztof Kieslowski, 1994). Talvez possamos dizer que, no ecrã, Trintignant soube expor as singularidades de alguns homens, sem nunca ceder a qualquer estereótipo do masculino. Neste tempo em que o aquário mediático em que vivemos menospreza a infinita complexidade que as relações humanas podem envolver, precisamos da sua subtileza. A começar pelo amor das palavras.. Jornalista