Muralha de Lisboa caiu. Jackpot no aeroporto

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Façamos um atalho: perguntemos a José Luís Arnaut o que quer a Vinci sobre os aeroportos. Governo e PSD subscreverão. Não há diferenças entre ambos. António Costa foi salvo pela Vinci, em 2012, da colossal dívida da Câmara de Lisboa, ficando o PS em silêncio quanto à privatização da ANA. No pacote estava a tal compra dos terrenos da Portela por 380 milhões de euros. Costa tem memória e gratidão. Em simultâneo, Passos Coelho e Miguel Relvas entregavam o monopólio dos aeroportos nacionais ao "compagnon de route", José Luís Arnaut. Não uma privatização de metade dos aeroportos do país, deixando outra metade para concorrência de preços e alternativas de localização. Não. Tudo para a Vinci. Que colecionava já o monopólio das pontes sobre o Tejo (atuais + direitos sobre as futuras). Luís Montenegro, colega passista, vai opor-se a isto? Não vai. Portanto, qual é a dúvida?

Não é preciso explicarem-se as vantagens de um aeroporto na Margem Sul para quem tem o exclusivo das novas receitas de portagens nas pontes de Lisboa. Por essa razão, a notícia da SIC sobre o plano Alcochete é um triplo jackpot para os franceses, que ficam, em troca, com mais 25 anos de concessão dos aeroportos, diz-se.

Alcochete, sozinho, custa 8 a 10 mil milhões em aeroporto + acessos. Quanto metem os franceses? O investimento Vinci na Portela + Montijo, calculado só para infraestruturas aeroportuárias, era de 1100 milhões. E continuarão a querer fazer o Montijo, como afirmou Pedro Nuno Santos, para apenas 10 a 15 anos de operação?

Haverá igualmente um plano de acessibilidades onde provavelmente estará uma terceira travessia do Tejo, "shuttle" de ligação à capital e, supõe-se, alta velocidade até Alcochete - tudo isto como encargos do Estado. O endividamento do país será significativo, ainda por cima num contexto de subida de juros.

Ainda assim, a Vinci parece ter a faca e o queijo na mão porque não há oposição a Alcochete (nem à esquerda, nem à direita, nem nos média). As alternativas construídas (Beja e outras), capazes de descongestionar Lisboa e tornar o território mais coeso, nem sequer fazem parte das hipóteses a equacionar. A teoria dos "50 anos!" a discutir o tema leva a esta rendição: Arnaut que decida.

Simultaneamente, tem de se reconhecer que o argumento da segurança de Lisboa é importantíssimo, mas na verdade um acidente pode nunca acontecer - e quanto mais a tecnologia avança, menos provável será. Entretanto, há fatores de igual importância a pesar neste domínio. Porque Lisboa passará a ser uma outra cidade e o número de vítimas rodoviárias a caminho de um aeroporto, a 50 quilómetros do centro, também são, infelizmente, certos.

Mas a questão central é outra e irreversível: o que estamos a destruir é a muralha ambiental de Lisboa. O estuário do Tejo no Montijo, e os seus milhares de aves, são uma cortina protetora da qualidade de vida da capital pelo equilíbrio entre avifauna, insetos e qualidade do rio. Já "Alcochete" é, em si mesmo, todo um ecossistema que garante a vida que Lisboa tem hoje - na qualidade do ar, na menor densidade populacional e na agricultura que resta.

É disto que abdicamos para ver nascer uma mini-cidade na Portela e uma cidade imensa na outra margem. Aquilo a que chamamos "desenvolvimento" sacrificará Lisboa. Só que, como a pandemia demonstrou, precisamos de uma base natural para viver melhor e não o contrário. O turismo e o imobiliário parecem cada vez mais a nossa salvação e escravidão, mas o resultado desta miragem tornará Lisboa numa enorme metrópole de milhões e de ninguém.

Jornalista

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