Municipais no Brasil. A ressurreição da política tradicional, o naufrágio de Bolsonaro e o hacker português

Partidos de centro-direita, como PSDB, DEM e MDB, e o chamado "centrão", todos abalados pela Lava-Jato, dominaram nas maiores cidades e no número total de prefeitos. Presidente só elegeu nove dos 59 candidatos que apoiou. Ataque cibernético a partir de Portugal pode ter ligação com extrema-direita brasileira
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Os efeitos da Lava-Jato e do advento do que se convencionou chamar de "nova política", principal referência da eleição presidencial de 2018, já não se sentiram nas municipais brasileiras deste fim de semana. Partidos do centro-direita, dos mais afetados pela operação liderada pelo ex-juiz Sérgio Moro, lideram nas principais cidades, São Paulo e Rio de Janeiro, e ganharam no número geral de prefeituras país afora. E Jair Bolsonaro, o símbolo da "nova política", apesar de ter sido deputado por 30 anos, perdeu em (quase) toda a linha, numa eleição marcada ainda por uma invasão informática com origem em Portugal.

Segundo a organização SaferNet, que trabalha com o Ministério Público Federal na prevenção a fraudes eleitorais, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) foi vítima de "operação coordenada planeada para ser executada no dia das eleições com o objetivo de desacreditar a justiça eleitoral e eventualmente alegar fraude no resultado desfavorável a certos candidatos", segundo Thiago Tavares, presidente da SaferNet em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo.

"Apesar de o ataque ter sido feito antes de 23 de outubro, deixaram para publicar o vazamento dos dados na manhã de hoje, para causar mais impacto", diz Tavares. "Em paralelo, deflagraram um ataque de negação de serviço (às 10h41) para tirar do ar o site e alguns serviços da Justiça Eleitoral", prossegue.

Tavares explica que os IPs usados em ataques de negação de serviço geralmente integram as chamadas "redes zombies", formadas por computadores infetados, que podem estar localizados no estrangeiro e serem coordenados daqui - neste caso, os IPs dos hackers que invadiram os sistemas do tribunal são de Portugal ou coordenados por um cidadão português.

Perfis de adeptos de Bolsonaro e de outros políticos tiveram no ataque, entretanto, o combustível necessário para uma campanha nas redes sociais a questionar a integridade do sistema eleitoral, uma velha batalha do hoje Presidente da República.

Na prática, os ataques tiveram como única consequência o atraso inédito na apuração dos votos pelo TSE - embora o juiz Luís Roberto Barroso, presidente do tribunal, tenha negado relação entre uma coisa e outra.

Por causa do atraso só já de madrugada se confirmou a esperada vitória do atual prefeito Bruno Covas em São Paulo, o maior colégio eleitoral do Brasil, com quase 33% dos votos, à frente de Guilherme Boulos, com 20%.

Covas, 40 anos, é do PSDB, partido com forte implantação em São Paulo. Assumiu o cargo após João Doria, a meio de 2018, decidir concorrer e ganhar a corrida para governador do estado. Neto de Mário Covas, fundador do PSDB ao lado de Fernando Henrique Cardoso e de outros, Bruno comoveu os eleitores ao passar por tratamento de quimioterapia durante o seu mandato em virtude de um cancro no trato digestivo.

Boulos é apontado como uma das principais lideranças da "nova esquerda", isto é, a esquerda além do Partido dos Trabalhadores (PT). O líder espiritual do PT e antigo presidente Lula da Silva, no entanto, já pediu o voto no político de 38 anos, com quem tem relação de amizade, na segunda volta. Boulos tornou-se sobretudo conhecido pela ação como presidente do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto e como candidato, com votação inexpressiva, à presidência em 2018.

A guerra da segunda volta já começou. "Derrotamos os radicais na primeira volta [referindo-se ao candidato apoiado por Bolsonaro], derrotaremos na segunda [referindo-se a Boulos]", disse Covas. Boulos rebateu: "Radicalismo é ter gente em São Paulo revirando lixo para comer".

Em terceiro lugar em São Paulo ficou Márcio França, do PSB (centro-esquerda), com 13%. Celso Russomanno, o escolhido de Bolsonaro, que chegou a liderar as sondagens antes de o Presidente da República passar a surgir na campanha eleitoral, não foi além dos 10%, pouco à frente do candidato liberal Mamãe Falei (Patriotas), com 9% , e da desilusão Jilmar Tatto, do PT, com 8%.

Também no Rio de Janeiro, outro representante da política tradicional venceu: Eduardo Paes, prefeito de 2009 a 2017, com 37%. Na segunda volta, ao contrário de São Paulo, não terá a companhia da esquerda mas sim do atual prefeito, o sobrinho de Edir Macedo e bolsonarista Marcelo Crivella, que somou quase 22 pontos. Os candidatos à esquerda, Delegada Martha, do PDT de Ciro Gomes, e Benedita da Silva, do PT de Lula, empataram com 11%. Para a segunda volta, Paes é considerado super favorito.

Não foi só nas cidades mais mediáticas que os representantes do centro-direita se destacaram: o MDB, partido de Michel Temer, sem surpresa, por ser o mais disseminado pelo país, conquistou mais prefeituras, 754, do que toda a gente; seguiram-no PP, partido mais atingido na Lava Jato, PSD, PSDB e DEM, todos com mais de 400 prefeituras. Nas cidades com menos de 150 mil habitantes não há segundas voltas.

PSDB e DEM são dois partidos tradicionais de centro-direita, o primeiro ligado ainda à figura do antigo presidente Fernando Henrique Cardoso, o segundo, que festejou ainda a eleição, logo à primeira volta, dos seus nomes em Salvador e em Curitiba, nos líderes das duas câmaras do Congresso, Davi Alcolumbre, no Senado, e Rodrigo Maia, na Câmara dos Deputados.

Já PP, PSD e outras forças fazem parte de um grupo chamado "centrão" que troca, assumidamente, o seu apoio ao governo de plantão por cargos na máquina pública.

A debacle do bolsonarismo, entretanto, também chama a atenção: dos 59 candidatos apoiados abertamente pelo presidente, só nove triunfaram. Além da derrota estrondosa de Russomanno em São Paulo e do desaire anunciado na segunda volta de Crivella, também Bruno Engler, a aposta em Belo Horizonte, acabou soterrado (10%) pela eleição, logo à primeira volta, do atual prefeito Alexandre Kalil (63%), cujas ações firmes no combate à pandemia foram criticadas pelo Planalto.

No Recife, o aguardado duelo de primos com tração à esquerda, João Campos (PSB) e Marília Arraes (PT), vai mesmo acontecer na segunda volta enquanto a Delegada Patrícia, apoiada por Bolsonaro, ficou-se pelo quarto lugar.

Além do Rio, só em mais duas capitais estaduais, Belém e Fortaleza, dois candidatos bolsonaristas, Delegado Eguchi e Capitão Wagner, estarão na segunda volta mas, como Crivella, em posição de outsiders.

Há três exemplos simbólicos da noite negra de Bolsonaro: o filho Carlos, embora eleito vereador no Rio, perdeu o lugar de mais votado da cidade para o esquerdista Tarcísio Mota, do PSOL, e caiu de 106 para 71 mil votos de 2016 para 2020; Rogéria Bolsonaro, a mãe de Carlos, com meros 2000 votos não se reelegeu; e Wal do Açaí, uma controversa ex-assessora do presidente, não foi além de 266 votos em Angra dos Reis, balneário carioca, mesmo depois do apoio explícito presidencial.

Bolsonaro, porém, festejou. "A esquerda sofreu uma histórica derrota nessas eleições, numa clara sinalização de que a onda conservadora chegou em 2018 para ficar. Para 2022 a certeza de que, nas urnas, consolidaremos nossa democracia com um sistema eleitoral aperfeiçoado. Deus, Pátria, Familia".

Destaque ainda para a elevada abstenção - no Brasil o voto é obrigatório sob pena de multas e outras sanções. Os 23% de ausentes, mesmo assim, foram considerados um "sucesso extraordinário" pelo presidente do TSE por serem apenas mais três pontos percentuais do que na última eleição presidencial e "debaixo de uma pandemia".

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