No Instituto Central de Arquivos, Isidore Louis cumpre a ordem emanada pelos superiores. A trabalhar na subsecção de Mitos e Lendas, o arquivista detalha em relatório todo o conhecimento reunido ao abrigo de um exercício ficcional, o das Cidades Obscuras. Sob o olhar de Isidore, desfilam os projetos de Calvani, urbe tomada pela febre da construção de estufas e jardins, Brüsel e o seu palácio dos três poderes, iluminado nas alturas, em contraste com a cidade abaixo, afundada na sombra, e a metrópole de Xhystos, elogio à construção em ferro e vidro. Isidore Louis é personagem de ficção nascida do desenho do belga François Shuiten e do argumento do francês Benoît Peeters. No álbum de banda desenhada de 1987, O Arquivista, os dois criadores abrem ao protagonista o caminho para o périplo às urbes imaginadas que entregam à Nona Arte desde 1983. A série As Cidades Obscuras reinterpreta, num mundo paralelo e num tempo mais ou menos incerto, urbes de diferentes geografias, sem que lhes falte a analogia a cidades palpáveis..Em 2010, Shuiten transpôs para selo a homenagem a um arquivista belga que marcou as primeiras décadas do século XX. Paul Otlet, arquivista, ativista da paz, advogado, nascido em 1868, é tido como o pai da documentação moderna. Otlet, a par do conterrâneo e também advogado, Henri La Fontaine, vencedor do Prémio Nobel da Paz em 1913, protagonizou uma experiência de colaboração internacional em prol do conhecimento. A estampa desenhada com o traço inconfundível de Shuiten cunhou o título "Do Mundaneum à Internet". Mundaneum sintetiza, desde o início do século XX, o projeto dos dois advogados que, ao longo de quatro décadas, fundaram e dirigiram uma instituição que visou reunir todo o saber do mundo para o organizar de acordo com o sistema que criaram, o da Classificação Decimal Universal. Este, permitia o acesso e a recuperação remota de toda a informação coligida e guardada num determinado local. Um projeto que quis classificar o mundo, vendo-o como uma colossal biblioteca ao serviço da humanidade..A utopia com raízes em 1895, sob o nome de Palácio Mundial, passaria a denominar-se Mundaneum na primeira década do século XX, casa de milhões de fichas informativas e documentos tão diversos quanto a capacidade humana para se expressar. Arquivo que, mais tarde, aspiraria tornar-se a peça central da nova Cidade Mundial, projeto que contou com a visão futurista do arquiteto de origem suíça, naturalizado francês, Le Corbusier..Para compreender a dimensão do projeto de Otlet e La Fontaine há que recuar à última década do século XIX com a criação do Instituto Internacional de Bibliografia, coleção de cartões de informação com o objetivo de catalogar factos como forma de constituir o futuro Repertoire Bibliographique Universal. Em finais de 1895, o arquivo contava com mais de 400 mil entradas e continuaria a crescer até 1934, ano em que atingiu os 15 milhões de entradas. Sob a égide do Mundaneum, nasceria o Instituto Internacional de Fotografia e o Museu Internacional dos Jornais. Na época, os avanços na tecnologia da informação permitiam a reprodução dos conteúdos de livros, periódicos e jornais em microfichas. Nestas, trabalhava no início do século XX Paul Otlet em colaboração com o físico e engenheiro Belga Robert Goldschmidt. Inovação que elevava as aspirações dos criadores do Mundaneum a almejarem um futuro "arrumado" numa imensa enciclopédia de microfichas, facilmente retrabalhadas, modificadas, completadas, sem requerer demoradas e onerosas reedições em papel..Tão grande volume de informação requeria espaço. Em 1920, o arquivo Mundaneum, sob autorização e apoio financeiro do governo belga, foi acomodado em mais de cem divisões no Palais du Cinquantenaire, em Bruxelas, onde permaneceria até 1934. Na época, o Mundaneum crescera de um arquivo documental para uma União das Associações Internacionais com representantes de diferentes países. Tratou-se da primeira associação internacional de direito privado a receber, ainda em 1919, o reconhecimento de um Estado. A ambição continuava a crescer e, com ela, o desafio lançado ao mundo da arquitetura para o projeto da futura Cidade Mundial. Em 1929, Le Corbusier explanaria em papel os contornos da cidade utópica de Otlet e La Fontaine. Metrópole que acolheria o edifício das associações internacionais, uma biblioteca internacional, um centro de estudos universais internacionais, pavilhões para a representação dos estados e um museu do mundo, com obras humanas ao longo de milhares de anos..Como veio de transmissão entre todos estes elementos estaria o Mundaneum e o seu arquivo acessível, entre outros meios, por telefone. Indivíduos de todas as geografias, com acesso a uma linha telefónica, poderiam pesquisar a memória do mundo e o conhecimento coletivo que albergava. Acesso universal à informação que Otlet preconiza na obra Traité de Documentation, publicado em 1934, e onde antevê um futuro com tecnologias como a videoconferência..A mesma década de 1930 que catapultou os projetos de Otlet e La Fontaine, assinou o fim da utopia Mundaneum, com quebra de financiamentos e, mais tarde, no decorrer da II Guerra Mundial, com o realojamento do arquivo, entretanto depauperado às mãos das tropas alemãs, num edifício do Parc Léopold..Otlet morreria em 1944, um ano após a morte do seu amigo La Fontaine. O espólio do projeto que visou ligar governos, cidades, universidades e indivíduos cairia no esquecimento até à década de 1980, quando o académico belga André Canonne advogou recriar o Mundaneum como um arquivo e museu dedicado a Otlet. Em 1998, a cidade de Mons, na Bélgica, acolheu a nova instituição. A informação que Paul Otlet sonhou globalizar no início do século XX está, atualmente, disponível online no site do museu..Nunca saberemos que palavras proferiria Paul Otlet se lhe fosse dada a oportunidade de segurar um tablet neste século XXI. Sabemos, porém, os projetos que guardou para um conhecimento universal e partilhado. Um desses exemplos é a Mondoteca, móvel desenhado pelo próprio Otlet em 1936, como suporte à sua Enciclopédia Universal Mundanuem..Na visão do belga, a Mondoteca estaria em casa de todos os cidadãos, munida de enciclopédias visuais, pequenos objetos, microfichas organizadas de acordo com a Classificação Decimal Universal. Nas laterais, o móvel teria telefone, rádio e fonógrafo. O projeto nunca seria concretizado.. dnot@dn.pt