Mulheres jornalistas, o longo caminho para a paridade

O jornalismo foi durante muito tempo uma profissão de homens a que correspondia um sem número de rituais masculinos. Em Portugal, esta realidade começou a mudar de forma lenta a partir das décadas de 1960 e 1970, mas só agora vemos um número crescente de mulheres a assumir cargos de direção.
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Houve um tempo, não muito distante, em que as poucas mulheres que queriam ser jornalistas, eram doutrinadas em sentido contrário com todo um conjunto de argumentos. Mas, se por índole ou convicção, persistissem nesse desígnio, sentavam-nas numa salinha à parte, onde a sua presença não perturbasse a liberdade dos homens. Que passava, antes de mais, pelo uso exuberante de todos os palavrões inventados e por inventar da língua portuguesa. Por causa disso, Antónia de Sousa, quando entrou no vespertino Diário de Lisboa, foi sentada no sótão, no arquivo do jornal, ao lado da arquivista Maria de Lurdes. Hoje, a realidade é muito diferente. A partir da década de 1980, as mulheres começaram a chegar às redações em número significativo e crescente. Segundo dados atualizados da Comissão Carteira profissional de Jornalista, num total de 5328 profissionais, 3145 são homens e 2183 mulheres, o que não sendo ainda paritário é algo com que só se podia sonhar nas últimas décadas do século XX.

A esta presença crescente nas redações corresponde também um número maior de mulheres em cargos de chefia, quer nas direções, quer nas editorias. Na Global Media Group, pela primeira vez, os dois jornais generalistas são dirigidos por duas mulheres: Rosália Amorim no DN e Inês Cardoso no JN. Bem como a marca de Economia do grupo, o Dinheiro Vivo, liderado por Joana Petiz. Mas o mesmo acontece neste momento em outros títulos nacionais como a revista Visão (Mafalda Anjos) ou o Jornal de Negócios (Diana Ramos). Se formos para a imprensa regional, esse número cresce de forma assinalável.

No entanto, mesmo que o grande número de mulheres nos cursos superiores de Comunicação Social e Jornalismo prometa mudanças na próxima geração, esta tem sido uma caminhada feita de dificuldades e obstáculos colocados por uma mentalidade que ainda não mudou o bastante. Mafalda Anjos, que dirige a Visão desde 2015, assinala o poder do preconceito, ainda que não verbalizado: "A minha experiência é um bocadinho atípica porque comecei e ter cargos de direção logo muito cedo, no Semanário Económico. Mas é evidente que todas as mulheres que têm vindo a assumir cargos de chefia nos media, depararam com situações em que eram as únicas numa sala cheia de homens, em que muitas vezes se tinham de impor para serem ouvidas e não serem interrompidas enquanto falavam." Esta diferença de tratamento passa, como diz Mafalda, pelo paternalismo que sentiu quando assumiu esses primeiros cargos: "Temos de ser muito pró-ativas na desmontagem dessas práticas. Por exemplo, nunca deixei que me interrompessem numa reunião." Ou ainda pelo modo diferenciado como são encarados os vários aspetos da vida de um profissional: "Várias vezes, em reuniões, deparei-me com esta situação: se uma mulher diz que tem de sair porque vai com os filhos ao médico, isso é encarado com um encolher de ombros. Se for um homem a dizê-lo, parece que se trata de um grande feito e é muito elogiado."

Joana Petiz, atual subdiretora do DN, além de diretora do Dinheiro Vivo, assume que nunca se sentiu descriminada no exercício da profissão, antes e depois de assumir funções de chefia. "Creio que tive a sorte de começar no semanário O Independente, que já era dirigido por uma mulher, a Inês Serra Lopes. Estagiei, fui convidada a ficar e muito nova assumi uma editoria, sempre com um ambiente muito favorável. Talvez o facto de o jornal ser relativamente jovem e não ter uma cultura muito masculina, como aconteceria em títulos mais antigos, ajudasse." Ambiente que Joana voltaria a ter ao tornar-se editora de Destaques do Diário Económico: "Ninguém me criou problemas por ser mulher ou por ser mais nova do que muitos dos que liderava. Acho que depende muito da nossa atitude - eu sentava-me ao lado deles, trabalho como eles, sempre acreditei numa verdade que me transmitiu a minha avó: para saber mandar, há que saber fazer."

A atitude das mulheres é, pois, uma peça chave na transformação. Ainda persistirá em muitas uma atitude de auto-sabotagem ou de síndroma do impostor? Mafalda Anjos acredita que sim: "Muitas vezes as mulheres não entravam nestes autênticos clubes do Bolinha porque não tinham acesso aos ambientes em que os homens cultivavam cumplicidades e onde se geravam os convites. Por outro lado, julgo que as mulheres não estão para se chegar à frente em determinadas áreas porque sabem que serão muito mais escrutinadas do que eles, muitas vezes por questões que nada têm a ver com a qualidade do seu trabalho." E dá o exemplo das mulheres comentadoras nos vários canais televisivos: "Em televisão, um comentador entra em estúdio após estar um minuto a pôr pó na cara, as mulheres estão meia hora a fazer a maquilhagem e a pentear o cabelo. Isto acontece porque o escrutínio é desigual e muito preconceituoso."

Com uma carreira iniciada na década de 1980, Helena Garrido, que passou por títulos como Jornal do Comércio, DN, Europeu, Público, Jornal de Negócios, sempre no jornalismo económico, assistiu a várias fases na profissão e fora dela: "A primeira grande manifestação de machismo e descriminação aconteceu-me logo que acabei o curso de Economia e ainda foi fora do jornalismo. Andava a tentar entrar no mercado de trabalho, e numa entrevista de emprego, pediram-me que explicasse qual seria a vantagem de contratar uma mulher economista. Fiquei perplexa e acabei por enveredar pelo jornalismo, quando o António Rebelo de Sousa, que fora meu professor, lançou o Jornal do Comércio." Nesse tempo, a redação já tinha algumas mulheres e, mais uma vez, o facto de ser um projeto criado de raíz fazia com que se esbatessem os vícios patriarcais de títulos mais antigos. "Foi no final da década de 80, quando entrei para o DN, que encontrei efetivamente esse ambiente masculino, tal como era o ambiente económico com que eu lidava no meu trabalho. Eram sobretudo senhores de fato e gravata, num universo em que havia marcas, como o Banco Comercial Português, que se arrogavam o direito de não contratar mulheres."

A longa marcha das mulheres portuguesas nas redações começou com Virgínia Quaresma (1882-1973), uma das primeiras mulheres licenciadas em Letras no nosso país, que, ainda durante a Iª República, escreveu notícias, reportagens entrevistas para vários jornais regionais e nacionais (como O Século) ao mesmo tempo que era professora de Ensino Secundário na Casa Pia. Seguiram-lhe o exemplo, ainda nas décadas de 1920 e 1930, mulheres como Maria Lamas, Etelvina Lopes de Almeida ou Carolina Homem Cristo que, a partir das revistas femininas que dirigiam (Modas e Bordados, no caso das duas primeiras, ou Eva, na terceira) procuraram muitas vezes mudar mentalidades e chegaram a enfrentar a censura prévia imposta pelo regime a toda a imprensa. No entanto, os jornais generalistas eram autênticas coutadas masculinas, como escrevem Carla Baptista e Fernando Correia no livro Jornalistas, do Ofício à Profissão: "Até aos anos 50, as mulheres jornalistas contavam-se pelos dedos de uma mão e sobreviviam solitárias e pioneiras, em jornais dispersos, sem que a sua presença pudesse ser atribuível a qualquer explicação sociológica, antes resultando de percursos biográficos excecionais. A partir de meados da década de 60 elas vão poder contar-se pelos dedos das duas mãos (...)". Ainda assim, durante anos, as portas dos jornais mantiveram-se fechadas para as mulheres e os argumentos eram os mais diversos: "(...) que a sua presença impediria os homens de falar livremente, expressando-se na linguagem grosseira e recheada de palavrões que afamava o jornalismo; que lhes seria difícil cumprir horários noturnos (como fazer uma senhora chegar a casa de madrugada, depois de um piquete de fecho, quando não havia transportes públicos e os jornalistas não ganhavam o suficiente para comprar automóvel ou pagar táxis?); que não seriam capazes de enfrentar a dureza do trabalho, sobretudo em situação de reportagem; ou que elas próprias não gostariam de frequentar uma profissão de boémios e noctívagos, com pouco prestígio social e modestas regalias financeiras."

No DN, a primeira mulher jornalista foi Manuela Azevedo, que aqui começou a trabalhar em 1960, vinda de outros jornais como o Diário de Lisboa e República. Intrépida e visivelmente apaixonada pela profissão, entrevistou Ernest Hemingway e o rei Umberto de Itália, mas recordava muitas vezes a oposição interna que sentia por parte dos colegas. Como aquela vez em que ouviu um fotógrafo do Diário de Lisboa dizer: "Já não nos bastava a censura lá fora, agora também temos a censura cá dentro." Nestes casos, Manuela recomendava-lhes apenas que falassem com ela como falavam com as suas mães e filhas. Nas décadas de 60 e 70, as mulheres começaram a chegar às redações. Maria Antónia Palla entrou para o Diário Popular em 1968, na sequência de um concurso destinado a recrutar novos elementos para a redação. No "vizinho" da Rua Luz Soriano, o Diário de Lisboa também abriria as portas a mulheres como Maria Judite de Carvalho, Diana Andringa, Helena Neves ou Maria Aurora Homem. Mas seria já após o 25 de Abril, e no DN, que o nome de uma mulher surgiria pela primeira vez no cabeçalho de um grande jornal, como diretora adjunta. Aconteceu a 5 de Abril de 1986, quando, pela primeira vez, sob o título se pôde ler: Director: Dinis de Abreu. Adjuntos: Helena Marques e Mário Bettencourt Resendes.

Para Helena, casada com outro jornalista (Rui Camacho), era o corolário de uma carreira dedicada ao jornal, como recorda agora um dos seus quatro filhos, Francisco Camacho: "Tínhamos uma vida um bocado diferente da dos meus amigos. Quando eu ia a casa deles, as mães estavam lá, não trabalhavam fora. O trabalho, sobretudo num jornal diário, tomava imenso tempo à minha mãe. Raramente chegava a casa a tempo de jantar connosco, o que não era um drama. Nesse tempo, as coisas iam fluindo e acabaram por correr bem." Quando passou a diretora adjunta, Helena "tornou-se ainda mais ausente e, coisa estranha para nós, passou a ter direito a motorista." Francisco nunca lhe sentiu qualquer queixa ou desconforto. "A minha mãe levava muito a sério o que fazia e assumia novas responsabilidades com gosto. O trabalho não lhe pesava." Do mesmo modo, não parecia chocar-se com a linguagem brejeira dos outros redatores: "Ela tinha uma linguagem refinada, nunca lhe ouvi um palavrão, mas vivia muito bem com o ambiente do jornal. Contava muitas vezes um episódio, em que alguém, ao deixar o jornal, se foi despedir dela e, com certa emoção, terá dito: "Não leve a mal mas eu acho que a Helena é uma gaja distinta". Ela ria-se imenso a contar isto."

Hoje, numa realidade muito distinta, Helena Garrido acredita que não vivemos ainda no melhor dos mundos: "Tudo bem, as mulheres entraram em força nas redações. Mas o que temos é uma descriminação dissimulada e encontramo-la nos detalhes e nos factos: Nas diferenças salariais, no número de mulheres que ocupam cargos de chefia, na sua presença ou ausência nas administrações." Com mais de 30 anos de profissão, Helena faz e propõe-me que faça o seguinte exercício: E se tivesse nascido homem, com as minhas características, com as mesmas qualidades profissionais, a mesma formação, onde estaria eu agora?

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