"Muitos jovens têm no traficante da região a figura paterna porque é ele que os ajuda a resistir à miséria"

Hoje bem-sucedido palestrante, empresário de futebolistas, escritor, ator e tema de documentário, Ângelo Canuto esteve no mundo do crime, circulou por 17 prisões diferentes e cruzou-se com líderes do Primeiro Comando da Capital.
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"Agora sou empresário de jogadores, como o Tornich, central do Portimonense, que sabe da minha história, eu não a oculto para ninguém, aliás, sonho palestrar por aí, ajudar jovens com a minha experiência, o amor não tem fronteiras", diz Ângelo Canuto, 50 anos, um caso raro de sucesso mesmo depois de anos a fio no mundo do crime e das prisões, ao DN.

Nascer pobre no Brasil é meio caminho andado para cair no mundo do crime?

Para o jovem pobre e preto só sobram restos. Salvo raríssimas exceções, ele será sempre mão de obra. Portanto, se não tiver um mínimo de instrução, acredita que apenas o sonho da música ou do futebol o poderá tirar dali. Mas como só muito poucos se destacam nessas áreas, se o garoto pobre e preto não tiver um plano B, há uma prisão de portas abertas para ele.

E o mundo do crime está, nas periferias, a cada esquina?

Pela ausência da figura paterna - eu, por exemplo, não sei quem é o meu pai - muitos jovens têm no traficante da região a figura paterna porque é ele que os ajuda a resistir à miséria.

Como foi preso?

Em 1997, entrei na polícia mas delinquí e paguei. Na minha visão estava certo, na da lei, não. No tráfico, trabalhei desde a biqueira até ao alto escalão. O crime é isso, começa pequeno mas é uma bola de neve. Participei em roubos de banco, resgates e outros delitos afins, só não admitia crimes sexuais.

A prisão foi um inferno?

Estive em 17. Na prisão, transformam-nos em pessoas piores logo de cara, ao ter de partilhar cama, de cabeça para baixo, um cheirando o pé do outro, em "valete", como chamamos. A alternativa é deitarmo-nos na "praia", que é o chão. Se quisermos ir ao banheiro, temos de ter cuidado para não pisar ninguém. E lá não há água, o cheiro contamina o ambiente. Ou seja, não é um sistema de ressocialização mas de tortura. Dessa forma, piora-se pessoas, fazem-nas regredir a primatas.

Li que tentou fugir e pensou no suicídio.

Como ninguém quer passar por isso, a ideia é criar grupos e fugir. Mas é só mais uma faceta do inferno: vi "manos" morrerem na linha de tiro ao subir o muro, outros a morrerem em tatus [túneis] que desmoronaram. Outra faceta do inferno é o derretimento do estado psicológico. A certa altura, para mim, o suicídio era a única opção. Foi aí que entrou a religiosidade, na prisão ela é muito importante.

Chegou a conhecer Marcola, o mítico líder do PCC?

Tinha admiração pelo nível intelectual dele, pela capacidade de viver em coletividade mesmo no caos, ele fala na importância de ler, de se informar, de lutar pelos seus direitos, vejo-o como um revolucionário dentro de um inferno, de uma faixa de Gaza. E ele, assim como o [Fernandinho] Beira-Mar e outros que se destacam intelectualmente, em vez de serem melhorados, são isolados num torniquete, depois noutro, até explodirem. Por que o Estado não utiliza as mentes deles para o lado positivo? Porque é uma fábrica de monstros e malucos.

O PCC é tão organizado como se diz?

Quando eu vivia na prisão, eu via o crime de um ângulo, agora, no mundo da literatura, do cinema, do futebol, eu vejo de outro. Com a internet, o que acontece em Portugal em cinco minutos já se sabe aqui. Eu transitei do tráfico nacional ao internacional, vaguei por esses mundos afora, sem sair do Brasil. O crime movimenta muito a economia e o PIB de muitas nações. Até onde vão os tentáculos do PCC? Não sabemos.

Conhece muita gente que quer sair, como você, do mundo do crime?

Sim: como a minha mensagem chega a pessoas em situação de cárcere, as minhas redes sociais são invadidas por casos desses.

Hoje trabalha em muitas áreas paralelas mas o futebol é a sua paixão?

Lutei muito para ser jogador mas não tinha condições de pagar transporte e alimentação e já contribuía para o orçamento da família como camelô [vendedor ambulante], vendia doces no comboio, e isso distanciou-me.

Como se tornou empresário?

Na prisão, ainda no regime fechado, eu conheci o rapper Dexter, tornamo-nos amigos, criamos um vínculo afetivo, eu fui até padrinho de casamento dele. Depois, no regime semiaberto, eu dividia-me entre faculdade e trabalho, antes de voltar à noite à prisão, e o trabalho era organizarmos concertos, ao quais iam jogadores de futebol, como Denilson, Vampeta, Amaral ou Edilson [estes dois últimos ex-Benfica], que me sugeriram ser empresário. Então, fiz pós-graduação em gestão e marketing desportivo.

Está realizado?

Quando olho para o retrovisor e vejo que podia, como outros, ter morrido e hoje me vejo como empresário, palestrante, escritor e até ator na série da Netflix DNA do Crime, casado, pai, avô, tenho de me sentir realizado. Mas a realização é um processo infinito. Estou realizado mas com muito a realizar.

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