"Muito acima de Fidel Castro existe um povo, o povo cubano"

Luís Represas esteve pela primeira vez em Cuba em 1978 e desde então mantém uma relação muito próxima com alguns artistas cubanos
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Foi precisamente em 1978, a primeira vez que esteve em Cuba par participar num festival de música que Luís Represas viu Fidel Castro. "Na rua e ao longe", especifica. E nunca mais voltou a ver o histórico líder cubano que morreu na sexta-feira, ao final da noite, aos 90 anos. "Aliás", refere, toda a minha passagem, toda a minha vivência que continua a existir em Cuba, nunca privilegiou a proximidade do aparelho político ou dos meandros políticos. A minha relação com Cuba é uma relação de rua, de povo, de músicos, de amigos, quase de família".

Sobre Cuba, o músico português, sublinha que "estamos a falar de um País que saiu há 60 anos de um estado de colónia, ainda por cima com um governo que se poderia dizer sanguinário, e completamente manipulado pela máfia e pelo crime organizado, estamos a falar de um país que há 60 anos vivia numa América Latina preenchida e ocupada por ditaduras inqualificáveis e todas elas ao serviço e defendidas pelos Estados Unidos da América - a América Latina era, de facto, o supermercado dos Estados Unidos da América. E em Cuba, um país com a nossa dimensão, nessa altura, um punhado de homens, que não eram mais de 12 os sobreviventes do barco Granma, conseguem dois anos depois, com o apoio total do povo e do país, conquistar o poder e devolver o poder ao povo."

Sobre Cuba, onde em 1993 foi criado o seu primeiro álbum a solo pós Trovante, Luís Represas lembra que "estamos a falar de um país que tem uma história muito grande, que não se resume à história pós-revolução. Estamos a falar de um país que vive numa guerra pela independência nacional desde há muito tempo. Fico muito aflito quando oiço muita ignorância, querendo personalizar em Fidel Castro todos os males e todos os bens vividos em Cuba nas últimas seis décadas ou, quase me atreveria a dizer, desde sempre. Muito acima de Fidel Castro existe um povo que se chama povo cubano. Se não fosse Fidel Castro com o seu carisma, outro surgiria, para levar o povo cubano àquilo que se pretendia que era à independência nacional, à sua dignidade. Temos que perceber que foram cometidos erros e muitos recuos e muitos caminhos sinuosos, mas não nos podemos esquecer que Cuba foi e é um país que nas últimas seis décadas foi constantemente agredido, além de ser bloqueado, e isso não se fala normalmente, com sabotagens, com mortes, com guerra química, enfim, tudo o que se possa imaginar que um país com a dimensão dos Estados Unidos da América pode fazer face a uma ilha do tamanho do nosso país."

"Falando mais particularmente da parte cultural, posso dizer que a música contou, durante os tempos em que [Cuba] esteve ligada à União Soviética, com os melhores mestres da música clássica que em Cuba ensinavam os jovens músicos, compositores, bailarinos e cantores com o que de melhor havia e se fazia. Isto aliado a uma cultura popular extremamente rica onde estas duas coisas juntas dão um resultado extraordinário e, por isso, hoje em dia, temos espalhados pelo mundo músicos e bailarinos [cubanos] de uma qualidade extraordinária."

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Luís Represas, que desde 1993 tem trabalhado com artistas cubanos como Pablo Milanés e o pianista Miguel Nuñez, sublinha ainda a importância dada à cultura na sociedade cubana: "isso faz toda a diferença; o saber quem somos, de onde vimos, o mundo que nos rodeia, só isso nos consegue apontar um bocado o caminho para onde vamos." E lembra que "um dos últimos comprometimentos de Fidel Castro foi exatamente a cultura e o investimento na cultura, de que é exemplo o Museu de Arte Contemporânea de Havana".

"Mas tenho de frisar bem isto: o dinheiro é muito pouco. É um país em bloqueio, com as dificuldades enormes que um país bloqueado tem... é difícil quando chega ao banco e lhe dizem que não pode mexer no dinheiro que tem na conta porque a conta está bloqueada; quando lhe dizem que não pode entrar no supermercado porque está proibido de lá entrar. Mas ao mesmo tempo continua a educar os seus filhos, a cuidar-lhes da saúde, continua a fazer deles homens e mulheres melhores. Não é fácil", diz sobre a o dia-a-dia da sociedade cubana.

"É evidente que também não se pode dizer que Cuba seja um poço de virtudes e que Fidel Castro fosse um poço de virtudes porque isso é estarmos a atraiçoar e a desvirtuar o ser humano que ele foi. Isso seria perfeitamente ridículo. Sim, volto a dizer, erros foram cometidos, tal como em todos os países."

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