"Mudar fraldas é um orgulho, mas a minha meta é voltar a ser a atleta que já fui"
Foi mãe há menos de um mês. Como está a ser essa experiência?
Está a ser do melhor que podemos ter na vida. Nada como olhar para a minha filha, a Matilde. É o meu mundo. É óbvio que a minha vida mudou completamente, primeiro fazia tudo a pensar na carreira, agora faço tudo a pensar nela, a minha princesa. Claro que a minha ideia é começar a preparar o regresso, voltar às grandes competições, mas para já quero viver este momento com ela.
Ser mãe era algo planeado ou aconteceu...?
Foi uma gravidez pensada, juntamente com o Benfica e o meu patrocinador, não quis fazer nada às escondidas. Sempre assumi que depois de ir aos Jogos Olímpicos queria ser mãe, foi isso que aconteceu. Tive o OK de toda a gente, o Benfica sempre me apoiou completamente, e isso é muito importante quando se tem um compromisso. Eu gosto de ter as minhas responsabilidades e o clube era parte interessada. Felizmente todos me apoiaram, incluindo o Comité Olímpico.
Os meses de gravidez foram de stress e ansiedade ?
Foi mais de ansiedade, era um sonho que eu tinha, ser mãe, e por isso queria muito que ela nascesse. Eu estava a precisar de uma paragem, fazer uma pausa na alta competição para depois voltar com mais força. Pensei que nove meses iam ser uma eternidade, mas não. Ainda no outro dia estava com uma barriga enorme e agora já tenho a Matilde nos braços.
Houve algum dia em que não correu?
Sim. Não estive parada a100%, fui correndo, fazendo as minhas caminhadas, bicicleta, piscina, fiz uma preparação diferente daquela que faço para um Mundial ou um Europeu [risos]. Depois dos seis/sete meses, tive um problema e nem caminhar podia, só fazer bicicleta. Depois no último mês a barriga já era muito grande e nem bicicleta...
Mudar fraldas é melhor do que subir ao pódio?
[risos] São coisas diferentes, ambas maravilhosas. Mudar uma fralda para mim é um orgulho, mas a minha meta é chegar onde já cheguei e ser a atleta que já fui.
E já sabia como fazer ou foi a aulas?
Eu já sabia porque tenho uma afilhada com 2 aninhos e fui praticando, mas claro que fui às aulas de preparação. Acho que ser mãe é uma lição que nunca sabemos por completo. Faz-nos bem conviver com outras futuras mães e trocar ideias, por isso fui às aulas e gostei da experiência, e até criámos um grupo de mães e tudo.
E o pai [Ricardo Ribas] ajuda?
O pai está apaixonado pela Matilde. Ele já tem uma filha de 8 anos e agora está a viver a segunda experiência, sabe bem o que fazer e fá-lo com muito carinho. Eu posso sair e entregar-lhe a Matilde, que sei que está bem entregue.
Disse que já está a pensar no regresso.
Não vou apontar datas ou objetivos. Fui mãe há menos de um mês e vou fazer agora um check-up para saber em que condições estou e traçar um plano de recuperação. Vou reunir-me com o Benfica, os treinadores, o médico, o nutricionista, o psicólogo, tudo... para eu começar a traçar um plano para o meu regresso, para fazer tudo direitinho e não arranjar nenhuma lesão. Quero dar um passo de cada vez, mas é obvio que quero voltar, e quando digo que quero voltar, refiro-me às grandes provas.
Há alguma lesão mais propícia após a maternidade?
Pela experiência de outras colegas que já foram mães, praticamente todas se lesionaram no regresso. Não quer dizer que vá ser o meu caso, espero que não, mas é preciso acautelar que isso não vai acontecer. O nosso corpo muda, aumentamos muito de peso com a paragem e a gravidez e não sabemos como o nosso corpo vai reagir ao treino e ao esforço. Por vezes a nossa ansiedade faz-nos precipitar, mas eu não quero isso. Eu não quero dar um passo maior do que a perna, mas o objetivo é voltar e voltar em grande.
Nos últimos anos, algumas das principais referências do fundo e do corta--mato foram mães à vez, a Sara Moreira, a Filomena, a Jéssica Augusto, a Dulce...
A Sara foi uma das que abriram as portas para as outras futuras mães, depois foi a Filó, a Jéssica, eu... já dá para fazer um clube de mamãs atletas. E com algumas medalhas [risos]. Se os nossos filhos tiverem os nossos genes, temos aqui uma geração de futuros campeões bem jeitosa.
Falhou os Mundiais de 2017 por estar grávida. Custou ver a prova pela televisão?
Custou um bocado, não vou dizer que não. São competições que nos marcam e ficam para a história, mas, por outro lado, não custou muito porque estava a viver uma coisa muito grandiosa. Estava preparada para ver pela televisão.
Agora vamos ter os Nacionais de estrada. A Dulce já venceu a prova por cinco vezes...
Neste ano vi de fora.
Como é essa rivalidade Benfica-Sporting no atletismo?
Existe sempre a rivalidade Benfica-Sporting, mas ainda bem porque é saudável e ajuda à promoção e evolução da modalidade. Quem faz o atletismo é quem dele faz parte. Atletas, treinador, dirigentes, adeptos e a própria comunicação social que realça a modalidade e ajuda a que as pessoas olhem para o atletismo de outra maneira. Hoje vê-se cada vez mais pessoas a praticar o running e corrida, mas é claro que gostava que a modalidade tivesse mais visibilidade do que a que tem ou que as pessoas olhassem para o nosso desporto de outra maneira, mas isso só se consegue com a ajuda de todos e uma mudança de mentalidades. Ir ver uma prova de atletismo é de graça e mesmo assim as pistas estão vazias. Quem está a ver? Os pais e pouco mais. Só com uma mudança de mentalidades podemos inverter esse cenário, não é só olhar para nós quando trazemos medalhas ou, pior, quando não as trazemos.
Em 2016, depois de ser condecorada pelo Presidente da República, pediu mais atenção para o atletismo. Lamenta o tratamento diferenciado dado ao futebol em relação às outras modalidades desportivas? Portugal é um país que reconhece os seus atletas ou só olha para eles em ano de Europeus, Mundiais ou Jogos Olímpicos?
Disse isso e criou-se logo uma polémica. Mantenho o que disse. Foi um desabafo de alguém triste e cansado, alguém que está no auge e mesmo assim é diminuído. Eu sei que é o futebol que move o desporto em Portugal, e ainda bem que há futebol e com o nível que tem, mas nós que praticamos outro desporto também gostávamos de ter essa atenção e visibilidade. Queremos que olhem para nós de maneira diferente e não só em Europeus ou Mundiais, mesmo que regressemos sem medalhas, porque somos humanos e ainda que tenhamos capacidades para as conquistar, por vezes não conseguimos. Somos humanos, não somos máquinas e por vezes as coisas não acontecem como nós queremos, por isso eu peço: quando isso acontecer, não deitem os atletas abaixo.
Já disse que está a pensar no regresso, e se calhar a pergunta é algo injusta, mas já pensou no que fazer depois de abandonar a carreira?
A profissão de atleta é um pouco ingrata nesse aspeto. Damos tanto ao nosso país e depois acaba a carreira e pensamos: "E agora o que é que eu vou fazer?" Ainda não tenho objetivos nesse campo, mas sei que quando acabar para o atletismo tenho de fazer alguma coisa, porque não sou pessoa de estar parada, eu é mais a correr [risos]. Não me imagino em casa sem fazer nada, mas tenho tempo para pensar. Ou melhor, não é cedo para pensar nisso porque já tenho 35 anos, mas para já não é altura de o dizer.
Atualmente as atletas abandonam cada vez mais tarde...
Sim, em Zurique, nos Europeus, tanto a campeã dos 10 000 como a da maratona tinham 40 anos uma e 41 a outra. Por isso eu, com 35 anos, ainda tenho mais cinco pela frente.
Isso ainda dá para mais uns Jogos Olímpicos então...
Nós acabamos uns Jogos Olímpicos, fazemos reset e começamos logo a pensar nos próximos, e já falta pouco para Tóquio 2020. Mas eu não me quero colocar demasiada pressão, só quero voltar bem, não quero essa pressão na minha cabeça agora. A ansiedade do regresso por vezes prejudica, mas é óbvio que quero mostrar a toda a gente que posso voltar a ser a antiga Dulce Félix.